Estavam todos reunidos lá. A
praia era linda e o por do sol enchia o céu de nuances dourados, vermelhas e violetas. Algumas
estrelas mais brilhantes começavam a salpicar o firmamento. O silêncio emprestava uma atmosfera sagrada
ao lugar. E eles estavam lá. Vindos de todas as partes do mundo de todos os
tempos, com suas roupas e modos característicos de cada época. Todos estavam
lá. Ternos, jeans, sáris, bermudas, fardas.
Calados e reverentes. Olhos
brilhando de excitação, alegria e orgulho. Uma ansiosa expectativa no ar. Então
os três chegaram e a multidão os abraçou num murmúrio de boas vindas caloroso,
fervoroso e entusiasta. Os três se
puseram na elevação de onde todos poderiam vê-los e ouvi-los. Ficaram ali em
silêncio até que o primeiro deles apontou para a multidão Seu braço longo coberto
por uma túnica branca e passeou pela multidão num longo arco. Os outros dois
seguiram seu movimento, cada um apontando numa direção como a procura de alguém
até que os três convergiram apontando para o mesmo indivíduo no meio daquela
singular aglomeração. Era um afrodescendente. Tinha o porte mediano, usava
óculos e um cabelo à moda militar. Estava à esquerda da grande massa que se
estendia por toda a areia da praia. A principio não percebeu que era para ele
que os três apontavam, ate que a multidão se abriu ao redor dele numa clareira,
podia-se ouvir os murmúrios e
exclamações de espanto e contentamento. E ele ficou ali, no meio, atônito e perplexo.
Os três seres apontaram para ele e num
piscar de olhos se fez um silêncio profundo. Até os ventos e as ondas silenciaram. O ser que estava no meio do trio
emitiu uma nota tão baixa e profunda que toda a natureza pareceu vibrar com
ela. Em seguida os outros dois seres se juntaram a ele naquela única nota que
pareceu fazer o Pão de Açúcar tremer e congelar o mar. E aquela única nota foi
se abrindo em tons baixos e profundos. Como uma aquarela, desenhando notas e
mais notas, aumentando de tom e intensidades, explodindo em cores. O próprio
tempo pareceu congelar. Toda a multidão em êxtase bebia cada acorde, cada coma.
Movendo-se lentamente como um só homem, embalados pelos sons celestiais. Corpos
e mentes unidos pela musica das estrelas. Então o homem apontado na multidão
começou a vibrar mais intensamente que seus irmãos, vibrar e flutuar no ar,
lentamente se erguendo sobre a multidão, braços abertos, cabeça jogada para
tras, seus lábios abertos balbuciando palavras ininteligíveis o corpo em transe profundo, embriagado pelas
notas que se sobrepunham em cascatas de sons inumanos, numa beleza que
transcendia o tempo e o mundo. O homem se elevou sobre a multidão e começou a
girar lentamente sobre seu próprio corpo e sobre um eixo imaginário de forma
graciosa e harmônica. Então asas maravilhosas explodiram de suas costas,
brancas e prateada. Asas abertas, lindas, coruscantes, a luz que elas refletiam
se quebravam em milhões de pontos coloridos, deslumbrantemente brilhando em
suas costas, abraçando seu corpo, faiscando. Ao mesmo tempo em que em espasmos
de luz seu corpo foi sendo coberto por uma armadura prateada e carmim, botas,
peitoral, capacete, perneira. O homem girava em êxtase total enquanto era
revestido por aquela couraça magnifica e sobrenatural que se materializava sobre
ele. Seu corpo continuava girando e subia
cada vez mais alto até que toda a praia desapareceu atrás dele e só as estrelas
e a música encantada dos seres o acompanhavam. Girando, por entre as estrelas, sentindo o calor
profundo e a vibração uníssona, era impulsionado para frente através das
dimensões físicas e sobrenaturais até que parou no meio do infinito e o véu se
rasgou diante dele e ele viu a face do Deus Altíssimo. E Deus sorriu para ele.
Durou um milésimo de segundos a maior de todas as honras, ver a face do Altíssimo. Tudo pareceu sem começo
nem fim, todos os propósitos convergindo para aquele momento, aquele olhar,
aquele sorriso. Num segundo sempre girando começou a descer lentamente com o
corpo queimando de prazer. Todos os seus sentidos inundados por aquela
presença, cada um de suas células explodindo em luz, cores e calor. Todos os
seus sentidos tomados, era como mergulhar num mar de luz se dissolver nele e
lentamente voltar a se conformar. Vinha descendo lentamente quando a multidão
na praia embevecida também explodiu em asas e armaduras, em espadas e lanças e
num salto subiram ao encontro de seu agraciado irmão, nos céus. Girando ao
redor dele entoando um hino de adoração ao Eterno, dançavam e adejavam em
círculos, mergulhos e ondas, ondas de anjos embalados pela musica dos três
seres celestiais. O brilho das armaduras e armas ofuscava as estrelas. O mar de
asas enchia o ar de uma vibração mágica. Toda a multidão estava nos ares,
enchendo os céus como um enxame de pássaros coloridos.
Um segundo, todos desapareceram
no ar. O homem se viu sozinho na praia de joelhos, arfando embriagado, sorrindo
e chorando. A música estava em cada membro, em cada célula de seu corpo, não
conseguia repeti-la, não conseguia entoa-la, mas ainda podia ouvi-la dentro de
si ecoando por seu espirito e coração. O homem se levantou e pôs-se a caminhar
lentamente até ao metro.
Desceu a rampa a tempo de
encontrar-se com as últimas notas de um saxofone cego que tocava jazz sentado num banquinho no canto da estação.
Inclinou-se colocou uma nota de real no chapéu do velho homem. Mas antes que pudesse empertigar-se o homem agarrou sua mão e sorriu, um sorriso
largo e profundo e disse, tateando o rosto do homem “Gloria Deus.... Gloria Deus” numa voz rouca e
cansada mais cheia de calor e misteriosa gratidão. O velho jazzista pois se a
chorar. O homem lhe sorriu e disse.. “amém, irmão”, de uma maneira tão amiga e sincera que
o cego cai de joelhos chorando... “Há cegos que enxergam mais que mil olhos”.
Portas se fechando ....
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