domingo, 8 de abril de 2018


Morrer

Estava muito machucado, ferido, machucado mesmo.
Podia-se ver na expressão do seu rosto, nos gestos lentos, na respiração pesada e descompassada, nos passos curtos e trôpegos.
Mas os olhos cintilavam como as chamas do inferno e sua voz tinha aquela cor que só as vitórias muito, mais muito sofridas imprimiam.
Olhou para mim com desprezo e horror.
“Para você guardei algo especial. Muito especial”, disse salivando e estalando a língua.
Todos os outros jaziam mortos espalhados pelo chão.
“Uma coisa especial mesmo”.
“Vai ser o último”, disse ele revirando os olhos.
“Vai ser o último”, repetiu sorrindo.
“Vai ser o último a morrer”.
“Não importa o que faça, o quanto procure, o quanto deseje”.
“Vai ser o último a morrer”.
“Ninguém velará você. Ninguém chorará por você. Porque todos os que você ama estarão mortos”. “Será o último, para morrer um pouquinho de cada vez. Cada um que se for levará um pouquinho de você”.
“Até que não te sobre nada. Nada por dentro, nada por fora. Até que fique oco. Até que fique vazio”.
“Vai viver para ver todos morrerem, vai viver para ver o crepúsculo dos deuses”.
“Sim, vai ver tudo ao seu redor morrer. E não achará descanso. Não achará beleza. Não achará sabor”.
“E quando a própria morte encontrar você, nada poderá tirar de você, porque eu já terei tirado tudo de você. Morto-vivo, homem sem sombra, sem reflexo no espelho”.
Falava isso enquanto acariciava o cabo de minha adaga enterrada firmemente eu seu peito. Sentia dor, mas o êxtase de ter contaminado a minha alma era maior.
Ele voltaria para o Umbral, para o mundo dos mortos. Eu não tinha para onde ir, nem onde ficar. Nenhum fogo me aqueceria, nenhum vinho me encantaria. Ele se apoiava nas mobílias, nas paredes, respirava com dificuldade. Já podia ter-se entregue. Mas nada tiraria dele o prazer de ver minha alma esvair-se entre meus dedos. A adaga tinha sido enterrada fundo. Mas ele mordeu fundo também. Sabia que estávamos condenados. Ele na morte, eu na vida.
O que ele dizia era verdade.
Do canto de sua boca escorria um sangue espesso e escuro.
Escuro como minha alma estava agora.