Estava em
meu quarto. Bem, parecia meu quarto. Tudo estava envolto em uma névoa espessa e
solene. Os móveis e todo o mobiliário emitiam uma vibração profunda que me
atingiam como ondas. Se ficasse bem quieto poderia ouvir, melhor, sentir uma
certa vibração, tudo emanava aquele tom...tudo vibrava. Confesso que achei
engraçado. Mais engraçado ainda era o fato do quarto não ter fim, o quarto se
estendia para frente e para os lados. Sem paredes ou limites. Eu não me mexia,
nada além dos olhos. Mas para onde quer que olhasse só via aquela extensão
tênue e vazia, o cômodo sem fim, o quarto escuro, mas estranhamente claro como
num entardecer, as vibrações das coisas. A cama parecia maior e qual uma folha
seca sobre um lago sereno parecia girar lentamente. Eu não me movia, a cama é
que girava devagar, tranquila. E foi subindo, subindo, pelo menos parecia subir
como um barquinho na maré alta subia lentamente e se estendia, como na
superfície de uma bolha que inflava. Foi nesse momento que com surpresa mais sem
assombro dei conta dele. Estava sentado do lado esquerdo, bem na beirada da
cama, de costas para mim. Alto, empertigado, firme e imóvel como uma rocha.
Suas pernas estavam dentro daquelas aguas tranquilas e escuras que envolviam a
cama até suas bordas, mas não mais além. Mesmo sem se voltar para mim
adivinhei-lhe as feições. Tinha a cor de cobre polido e escuro, seu rosto
lembrava uma máscara veneziana. Suas vestes eram brancas e indefinidas, suas
mãos de dedos longos pousavam sobre as aguas.
De vez enquanto a distancias distintas pequenos círculos se formavam na
água espessa, fora isso nenhum movimento. Nada parecia igual, nada era
diferente. Era como um sonho bom mais distante. Perguntei
- Quem é
você? Nada. Tentei de novo como um eco
da primeira vez.
- Quem é
você? Dessa vez a resposta veio. A voz
não cortou o caminho entre nós, brotou em minha mente como um pensamento
próprio.
- Sou o
condutor. Isso pareceu um fim em si mesmo. Isso pareceu dizer ou querer dizer
tudo. Puxei a coberta instintivamente para meu peito e repeti. “condutor”.
Ele então
voltou-se para mim. E pela primeira vez vi seus olhos. Parecia ouro polido.
Extremamente claros e brilhantes. Uma onda de calor profundo me cobriu. Senti
meu corpo vibrar. Ele apenas me olhava. Repeti quase hipnótico “condutor”. E
ficamos assim calados. Uma dorzinha suave veio de dentro do meu peito e
começava a espalhar-se por todo ele, como se uma faca estivesse sendo enfiada
em meu peito. Olhei para ele como quem pede socorro. Ele se inclinou para mim,
quase imperceptivelmente e seu dedo tocou-me o peito entrando quase até a
metade. Um calor gostoso me envolveu como u abraço. Como se uma nota musical
tivesse percorrido meu ser. Um entusiasmo, uma satisfação enorme preencheu todo
o meu corpo e alma. Senti que ia mijar na cama de tão relaxado, mas não mijei.
Sem se mover seu rosto voltou-se para frente e eu continuei ali, tranquilo,
inebriado por aquele toque. Mas a diante, longe à esquerda clarões vermelhos e
negros explodiam, no fim do horizonte, uma tempestade. Chegavam como procelas.
Eram explosões, gritos, fogo, raios, escuridão, um vento gélido e espesso como
garras de gelo chegavam até mim. Eram gritos sim, gritos horríveis e o ribombar
de raios terríveis. O céu era pesado ali, denso, monstruoso e vinha se aproximando
velozmente de nós. Toldando todo o céu atrás de si, maculando-o. Era aterrador
e sufocante, como se grossos tentáculos de lama e lodo gelados, dedos de um
gigante, se estendessem para mim...
- Não ....
Olhe. Sua voz soou como as batidas nas teclas de um piano. Ele só disse uma
vez. Mas estas palavras soaram mil vezes dentro de mim. Ele estava sentado na
borda da cama, ereto, tinha uns três metros de altura. Suas roupas, como seria possível, estavam mais brilhantes ainda... Um
brilho prateado, muito intenso, mas não ofuscante. Senti o calor daquele brilho. Não olhava para
mim, mas para a tempestade.
- Não olhe. Não sei se falou de novo, ou eram os ecos da
primeira frase. Não traga eles para cá.
Dois tons. Uma ordem, um sussurro. Ele olhava direto em meus olhos
e olhava para a tempestade ao mesmo
tempo. Eu queria perguntar como. Estava hipnotizado. Um terror horrível se
apoderou de mim. Queria gritar, me mexer, virar, fugir. Queria estender a mão e
abraça-lo segurar em alguma coisa. Ele cresceu mais ainda. Ou estava de pé
sobre a borda de minha cama, olhava fixo para a tempestade. Uma garra
gigantesca feita de fogo e raios cortou uma nuvem escura e esmurrou com força o
mar levantando uma grande onda negra, gigantesca e mal-cheirosa de ventos e espumas
escuras. Ele levantou a mão direita
espalmada para frente. E suspirou, prendendo o movimento por um segundo ou
dois. E o vórtice pareceu congelar e retroceder. Recolher-se como uma capa
velha enrolada sobre si mesma.
- Obrigado,
disse aliviado ao ver aquele “mar tempestuoso” retroceder e perder-se no
horizonte de meu quarto.
Mas uma vez
sem saber se repetia ou se ainda eram os ecos da primeira fala, brotou em minha
mente as palavras musicais, “Não olhe”. E quase no finzinho “Olhe só para
mim”. Ficamos em silencio. Era
constrangedor e baixei a cabeça. Ele voltou-se para frente sem dizer mais nada.
Para quebrar o gelo perguntei, não, pensei. Qual o seu nome?!? Ele de costa
para mim, sentado como um capitão em seu barquinho e eu semicoberto . ”Qual o seu
nome?” Que pergunta idiota
-Si... Si é um nome. O nome-nota musical me deu uma
animação, um alento, uma vontade de pular, de gritar, de me jogar sobre suas
costas e abraça-lo. Aquela voz
explodindo em meu coração era como se um cachorrinho vira-latas pulasse em meu
colo e lambesse meu rosto, naquela agonia de filhotinho...lambendo e pulando,
me convidando para festa.
Si. Quando
dei por mim, ele estava completamente voltado para mim, encarando-me,
envergonhei-me de novo. Será que ele sabia o que eu estivera pensando? Será que
lia meus pensamentos? Enrubesci. Cachorro de raça, com pé de gris,
comportado....Grande, bonito e forte, emendei, corrigindo meus pensamentos.
Seu cenho franziu
levemente, quase um coma.
- Si, um
condutor. Apernas Si. Não uso rabo, disse por fim. As última palavras pareciam
uma gozação comigo. Fiquei calado e confuso..
Daqui não há
mais volta disse por fim. A cama agora deslizava com mais velocidade e vigor.
Ele estava de pé na borda da cama, braços estendidos em fora de cruz... E uma
luz brilhante começava a crescer no horizonte, maior até que isso. Ele sorria,
o sorriso de quem volta para casa, para os amigos. Eu segurei na cama extasiado
e perplexo... De repente a cama parou
abruptamente, tanto que rolei e dela teria caído se não me chocasse contra seu
corpo, quente e solido como uma coluna. Ele estático. Inclinou a cabeça
levemente para a esquerda como se estivesse ouvido vozes. Lentamente foi
baixando os braços. E olhando nos meus olhos sem se virar disse num sussurro...
- Vamos
voltar.
Pensei, mas
ele disse ... Disse que não tinha mais volta..
E ele
tomando meus pensamentos, completando-os disse...variáveis..
Vamos
voltar... A cama começou a retroceder como num filme rebobinado de frente para trás...
Uma dorzinha quente começou a queimar meu peito de novo. Olhei para ele como da
primeira vez, pedindo socorro, mas ele não se voltou..
Vamos
voltar, mas uma vez eu não sabia se ele tinha repetido ou ainda eram as
primeiras palavras ecoando em minha mente...
Alaridos...vozes...gritos...
choro.. meu quarto foi clareando.. Uma agonizante onda de choque chocou contra
meu peito... Alguém gritara bem em meu ouvido... DESFIBRILADOR... DEPRESSA....
50 ml de ....dipina... Gente ... Muita gente... Rostos fantasmagóricos,
conhecidos e desconhecidos aos poucos
iam ganhando foco. Médicos, enfermeiras, uma mixórdia de gente em meu quarto...
Gritaria, correria, confusão.. médicos... Alguns rostos continuavam fantasmas,
outros familiares.
Tinha sido
uma bela final, eletrizante. Tínhamos ganho
de 3x2 o último gol aos 45 do segundo tempo, escanteio, de cabeça, goleiro nem
pulou...
Madrugada, pressentimento,
minha filha liga, não atendo. Liga de novo. Tabela com a vizinha. Vizinha bate
a minha porta, tabelinha. Liga para minha filha. Filha cruza para mim. Ninguém
atendeu. Minha filha, puro desespero. Tabela com o hospital... “Tem plano?!?”
Liga para a vizinha, vizinha pro porteiro.. Porteiro para a ambulância. Ambulância
corta o rol de entrada.. Furam a defesa e entra na grande área...
Si....
Si tivessem
demorada mais um pouco... Si.
Si a minha
filha não tivesse ligado.. Si.
Si a vizinha
não tivesse dado o alarme.
Si os
médicos não tivesse chegado a tempo...
Infarto do
miocárdio...
Sem
pulso....
Pressão
arterial caindo...Perdemos ele.
Não. Não
vamos desistir. Não cruzamos a cidade a toa. Desfibrilador. Potencia máxima...
Mais um choque...
Mais um
choque...
Mais um...
Vamos lá reage.
Vamos lá... Honra essa camisa rubro-negra. Mais um choque... Vamos lá campeão.
Variáveis...
Voltou...
Porra...ele voltou... Beleza!!!!
O quarto
explode num gol de final de campeonato.
Si.... Si tivéssemos
demorado mais um segundo, teríamos perdido a final...
Si.... Ao
longe em meio à névoa que dispersava.. O condutor pareceu sorrir para mim...
Variáveis.
22/12/2013
2:54h