quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Tempestade







Tempestade



Ela saltou por sobre o parapeito da janela do primeiro andar, mal seguida por sua sombra que custara a abandonar as cobertas quentes e macias. Seus pezinhos pequenos mais firmes se precipitaram pela escuridão  embalados pelas quase audíveis batidas de seu coraçãozinho saltitante. Ia para o farol. Era de lá que enfrentaria o inimigo atroz. Ia escorregando pelo caminho, sentindo a tempestade fustigar lhe o rosto e roubar-lhe o ar. Sentia-se congelada, mas viva, muito viva, como se o demônio da tempestade mandado para assustá-la revelasse uma reserva de forças e coragem inimagináveis. Seu pequeno corpo curvado, enregelado, açoitado pela chuva e pelo vento teimava em não ceder. E cada passo era um triunfo. Uma bofetada na cara da tenebrosa procela. Chegou a porta do velho farol, a chave sempre na tranca. Girou com certa dificuldade. Mas pelos dedos congelados do que pela idade do metal que já vira muitas maus tempos. Abriu, escuridão e silencio a fizeram estacar. Um raio iluminou os céus e o interior da velha torre de pedra. Era o demônio a zombar dela. Outro explodiu em resposta. Lá fora mar e céu se uniam numa dança louca, rebentando contra as rochas e o píer que gemia sob a sinfonia infernal de força e poder. Era o inferno na terra. Deu-se conta que não estava de pé. O último raio a fizera tremer tanto que caíra ao chão tremendo como uma ... uma... criancinha... Não, não ia ser derrotada assim tão fácil. Levantou-se lenta mais determinada e para seu assombro não sentia mais o frio. Sorriu por dentro imaginando se a mesma febre que levara sua mãe aos penhascos agora viera cobrar a filha. Seria forte. Seria mais forte, dizia de si para si. E passo a passo venceu a escuridão e o rugido da tempestade. O demônio como ultimo recurso começara a bater portas e janelas numa frenética algazarra respondida lá fora pela fúria do mar e do vendaval. Era o inferno na terra. Chegou ao último andar dos doze que a levavam ao topo e ironicamente percebeu que o último passo coincidira com um “amém” rouco que lhe escapara da garganta. Abriu a última porta. O vento a jogou do outro lado do cômodo. Caiu sentada. Parecendo um boneco abandonado. Ao rolar mordera a língua e uma nesga de sangue escorria  pelo canto da boca. Numa distração do demônio saltou para fora e encarou a tempestade no exato instante em que fendia o mar. Um relâmpago serpenteou pela escuridão e foi explodir numa gargalhada insana para além do horizonte. A menina por uns instantes se quedou fascinada pela fúria cega. Por um segundo ou dois duvidou de seus planos. Mas antes que sua mente argumentasse, pezinhos velozes a jogaram contra a murada, último bastião entre a sanidade e a loucura. Foi de lá que com uma voz tão cortante quanto os trovões gritou o nome da mãe até não mais poder. Gritou, insultou, implorou para mar devolver sua amada. A tempestade rugiu desafiadora. O mar bradou que não soltaria. E as lágrimas quentes da menina por um segundo calaram o céu e o mar. Mas a tempestade impiedosa cobrou ânimo e veio de ímpeto contra aquele corpinho frágil jogando-a no fundo do aposento de novo. Uma onda enorme veio lamber a base da grande sacada por onde se debruçava. A menina vencida, sentiu suas últimas forças a abandonarem e explodiu num choro profundo...  A tempestade explodia lá fora, todos os demônios agora soltos fustigavam o mar que como um monstro disforme abria sua boca procurando alguém tragar. Não tinha mais forças para gritar, nem para se mexer, se viu sozinha, gelada, encharcada na escuridão, o grande plano de resgatar sua mãe das entranhas do mar agora lhe parecia ridiculamente tolo... Mas foi nesse momento, pouco antes de desmaiar que se sentiu envolto em grande calmaria, aninhada em braços ternos. Estava a desmaiar ou a se tomada num colo macio e quente. Seu último suspiro consciente trouxe-lhe a lembrança de um abraço de materno. Tinha vencido a tempestade. De volta aos braços da mãe.



Si...



Estava em meu quarto. Bem, parecia meu quarto. Tudo estava envolto em uma névoa espessa e solene. Os móveis e todo o mobiliário emitiam uma vibração profunda que me atingiam como ondas. Se ficasse bem quieto poderia ouvir, melhor, sentir uma certa vibração, tudo emanava aquele tom...tudo vibrava. Confesso que achei engraçado. Mais engraçado ainda era o fato do quarto não ter fim, o quarto se estendia para frente e para os lados. Sem paredes ou limites. Eu não me mexia, nada além dos olhos. Mas para onde quer que olhasse só via aquela extensão tênue e vazia, o cômodo sem fim, o quarto escuro, mas estranhamente claro como num entardecer, as vibrações das coisas. A cama parecia maior e qual uma folha seca sobre um lago sereno parecia girar lentamente. Eu não me movia, a cama é que girava devagar, tranquila. E foi subindo, subindo, pelo menos parecia subir como um barquinho na maré alta subia lentamente e se estendia, como na superfície de uma bolha que inflava. Foi nesse momento que com surpresa mais sem assombro dei conta dele. Estava sentado do lado esquerdo, bem na beirada da cama, de costas para mim. Alto, empertigado, firme e imóvel como uma rocha. Suas pernas estavam dentro daquelas aguas tranquilas e escuras que envolviam a cama até suas bordas, mas não mais além. Mesmo sem se voltar para mim adivinhei-lhe as feições. Tinha a cor de cobre polido e escuro, seu rosto lembrava uma máscara veneziana. Suas vestes eram brancas e indefinidas, suas mãos de dedos longos pousavam sobre as aguas.  De vez enquanto a distancias distintas pequenos círculos se formavam na água espessa, fora isso nenhum movimento. Nada parecia igual, nada era diferente. Era como um sonho bom mais distante. Perguntei
- Quem é você?  Nada. Tentei de novo como um eco da primeira vez.
- Quem é você?  Dessa vez a resposta veio. A voz não cortou o caminho entre nós, brotou em minha mente como um pensamento próprio.
- Sou o condutor. Isso pareceu um fim em si mesmo. Isso pareceu dizer ou querer dizer tudo. Puxei a coberta instintivamente para meu peito e repeti. “condutor”.
Ele então voltou-se para mim. E pela primeira vez vi seus olhos. Parecia ouro polido. Extremamente claros e brilhantes. Uma onda de calor profundo me cobriu. Senti meu corpo vibrar. Ele apenas me olhava. Repeti quase hipnótico “condutor”. E ficamos assim calados. Uma dorzinha suave veio de dentro do meu peito e começava a espalhar-se por todo ele, como se uma faca estivesse sendo enfiada em meu peito. Olhei para ele como quem pede socorro. Ele se inclinou para mim, quase imperceptivelmente e seu dedo tocou-me o peito entrando quase até a metade. Um calor gostoso me envolveu como u abraço. Como se uma nota musical tivesse percorrido meu ser. Um entusiasmo, uma satisfação enorme preencheu todo o meu corpo e alma. Senti que ia mijar na cama de tão relaxado, mas não mijei. Sem se mover seu rosto voltou-se para frente e eu continuei ali, tranquilo, inebriado por aquele toque. Mas a diante, longe à esquerda clarões vermelhos e negros explodiam, no fim do horizonte, uma tempestade. Chegavam como procelas. Eram explosões, gritos, fogo, raios, escuridão, um vento gélido e espesso como garras de gelo chegavam até mim. Eram gritos sim, gritos horríveis e o ribombar de raios terríveis. O céu era pesado ali, denso, monstruoso e vinha se aproximando velozmente de nós. Toldando todo o céu atrás de si, maculando-o. Era aterrador e sufocante, como se grossos tentáculos de lama e lodo gelados, dedos de um gigante, se estendessem para mim...
- Não .... Olhe. Sua voz soou como as batidas nas teclas de um piano. Ele só disse uma vez. Mas estas palavras soaram mil vezes dentro de mim. Ele estava sentado na borda da cama, ereto, tinha uns três metros de altura. Suas roupas, como seria  possível, estavam mais brilhantes ainda... Um brilho prateado, muito intenso, mas não ofuscante.  Senti o calor daquele brilho. Não olhava para mim, mas para a tempestade.
- Não olhe.  Não sei se falou de novo, ou eram os ecos da primeira frase. Não traga eles para cá.  Dois tons. Uma ordem, um sussurro. Ele olhava direto em meus olhos e  olhava para a tempestade ao mesmo tempo. Eu queria perguntar como. Estava hipnotizado. Um terror horrível se apoderou de mim. Queria gritar, me mexer, virar, fugir. Queria estender a mão e abraça-lo segurar em alguma coisa. Ele cresceu mais ainda. Ou estava de pé sobre a borda de minha cama, olhava fixo para a tempestade. Uma garra gigantesca feita de fogo e raios cortou uma nuvem escura e esmurrou com força o mar levantando uma grande onda negra, gigantesca e mal-cheirosa de ventos e espumas escuras.  Ele levantou a mão direita espalmada para frente. E suspirou, prendendo o movimento por um segundo ou dois. E o vórtice pareceu congelar e retroceder. Recolher-se como uma capa velha enrolada sobre si mesma.
- Obrigado, disse aliviado ao ver aquele “mar tempestuoso” retroceder e perder-se no horizonte de meu quarto.
Mas uma vez sem saber se repetia ou se ainda eram os ecos da primeira fala, brotou em minha mente as palavras musicais, “Não olhe”. E quase no finzinho “Olhe só para mim”.  Ficamos em silencio. Era constrangedor e baixei a cabeça. Ele voltou-se para frente sem dizer mais nada. Para quebrar o gelo perguntei, não, pensei. Qual o seu nome?!? Ele de costa para mim, sentado como um capitão em seu barquinho e eu semicoberto . ”Qual o seu nome?” Que pergunta idiota
-Si...  Si é um nome. O nome-nota musical me deu uma animação, um alento, uma vontade de pular, de gritar, de me jogar sobre suas costas  e abraça-lo. Aquela voz explodindo em meu coração era como se um cachorrinho vira-latas pulasse em meu colo e lambesse meu rosto, naquela agonia de filhotinho...lambendo e pulando, me convidando para festa.
Si. Quando dei por mim, ele estava completamente voltado para mim, encarando-me, envergonhei-me de novo. Será que ele sabia o que eu estivera pensando? Será que lia meus pensamentos? Enrubesci. Cachorro de raça, com pé de gris, comportado....Grande, bonito e forte, emendei, corrigindo meus pensamentos.
Seu cenho franziu levemente, quase um coma.
- Si, um condutor. Apernas Si. Não uso rabo, disse por fim. As última palavras pareciam uma gozação comigo. Fiquei calado e confuso..
Daqui não há mais volta disse por fim. A cama agora deslizava com mais velocidade e vigor. Ele estava de pé na borda da cama, braços estendidos em fora de cruz... E uma luz brilhante começava a crescer no horizonte, maior até que isso. Ele sorria, o sorriso de quem volta para casa, para os amigos. Eu segurei na cama extasiado  e perplexo... De repente a cama parou abruptamente, tanto que rolei e dela teria caído se não me chocasse contra seu corpo, quente e solido como uma coluna. Ele estático. Inclinou a cabeça levemente para a esquerda como se estivesse ouvido vozes. Lentamente foi baixando os braços. E olhando nos meus olhos sem se virar disse num sussurro...
- Vamos voltar.
Pensei, mas ele disse ... Disse que não tinha mais volta..
E ele tomando meus pensamentos, completando-os disse...variáveis..
Vamos voltar... A cama começou a retroceder como num filme rebobinado de frente para trás... Uma dorzinha quente começou a queimar meu peito de novo. Olhei para ele como da primeira vez, pedindo socorro, mas ele não se voltou..
Vamos voltar, mas uma vez eu não sabia se ele tinha repetido ou ainda eram as primeiras palavras ecoando em minha mente...  
Alaridos...vozes...gritos... choro.. meu quarto foi clareando.. Uma agonizante onda de choque chocou contra meu peito... Alguém gritara bem em meu ouvido... DESFIBRILADOR... DEPRESSA.... 50 ml de ....dipina... Gente ... Muita gente... Rostos fantasmagóricos, conhecidos e desconhecidos  aos poucos iam ganhando foco. Médicos, enfermeiras, uma mixórdia de gente em meu quarto... Gritaria, correria, confusão.. médicos... Alguns rostos continuavam fantasmas, outros familiares.
Tinha sido uma bela final, eletrizante.  Tínhamos ganho de 3x2 o último gol aos 45 do segundo tempo, escanteio, de cabeça, goleiro nem pulou...
Madrugada, pressentimento, minha filha liga, não atendo. Liga de novo. Tabela com a vizinha. Vizinha bate a minha porta, tabelinha. Liga para minha filha. Filha cruza para mim. Ninguém atendeu. Minha filha, puro desespero. Tabela com o hospital... “Tem plano?!?” Liga para a vizinha, vizinha pro porteiro.. Porteiro para a ambulância. Ambulância corta o rol de entrada.. Furam a defesa e entra na grande área...
Si....
Si tivessem demorada mais um pouco... Si.
Si a minha filha não tivesse ligado.. Si.
Si a vizinha não tivesse dado o alarme.
Si os médicos não tivesse chegado a tempo...
Infarto do miocárdio...
Sem pulso....
Pressão arterial caindo...Perdemos ele.
Não. Não vamos desistir. Não cruzamos a cidade a toa. Desfibrilador. Potencia máxima... Mais um choque...
Mais um choque...
Mais um...
Vamos lá reage. Vamos lá... Honra essa camisa rubro-negra. Mais um choque... Vamos lá campeão.
Variáveis...
Voltou... Porra...ele voltou... Beleza!!!!
O quarto explode num gol de final de campeonato.
Si.... Si tivéssemos demorado mais um segundo, teríamos perdido a final...
Si.... Ao longe em meio à névoa que dispersava.. O condutor pareceu sorrir para mim...
Variáveis.
22/12/2013
2:54h

Moinho



Moinho

Andara em círculo boa parte da noite. Sabia guiar-se pelas estrelas, quando havia estrelas para se guiar. A chuva era  intermitente e pesada e o céu não se abria. Sem cavalo, ração ou um cobertor velho para se enrolar.  A chuva encharcara todo graveto e palha que encontrara.  Na caminhada, a esmo, achou um velho tronco oco e ali se aninhou. Mas bem a chuva recomeçou percebeu a inutilidade do abrigo. Caminhou na noite escura e chuvosa sem rumo. Não podia ficar parado ou congelaria. Caminhou sem entusiasmo ou direção até tropeçar num ruído estranho e contínuo. À distância, um velho moinho, caindo aos pedaços, de aspecto lúgubre se destacava nas sombras. Das oito janelas toscas dispostas quatro a quatro em dois andares apena uma estava precariamente iluminada. O som estranho, quase um gemido, vinha do  fantasmagórico  dançar das pás no vazio escuro.
Apertou o passo e os olhos, já  sentindo na pele o gosto do calor e da palha macia a abrigar-lhe o corpo. Mas a alguns passos da porta congelou seus movimentos e jogou-se de bruços no terreno lamacento. Toda espécie de criaturas e bichos teriam tido a mesma ideia de esconder-se da tempestade ali. Aquilo poderia ser um campo minado. Estava desarmado, faminto, cansado. Seu corpo gélido não responderia com destreza e força a um ataque mesmo da menor das ameaças. Mordeu os lábios e crispou os olhos, diante do pensamento de um ataque. Ali, naquela situação o melhor a fazer era confiar em seus ouvidos e de gatinhas aproximar-se da porta. Era uma porta velha e pesada como a noite. Antes que sua mão alcançasse a maçaneta o vento frio e úmido fez-lhe as honras entreabrindo a porta que rangeu sobre seus eixos num convite amargo. Agora tinha que entrar, perdera o elemento surpresa, empertigou-se e deu um passo, depois outro e mais outro, estava dentro. Mais uma vez o vento zombeteiro pregou-lhe uma peça batendo a porta violentamente contra sua nuca fazendo-o cambalear atônito para dentro do recinto e da escuridão.
Ficou agachado e imóvel. A boca cheia de feno e terra amaldiçoava a noite, o vento, sua sorte, a chuva. Silêncio. O interior cheirava a mofo e sebo de carneiro, proveniente da vela tosca e grossa que brigava com a escuridão tentando inutilmente iluminar o recinto. No mais, tudo era uma mixórdia, um  depósito de guaxinins. Mobilhas quebradas,  feno, sacos de areia, jarros e cacos de jarros espalhados pelo chão e o gemido sinistro da pedra de moer movida pelas pás que giravam no alto do moinho. “Bem, pelo menos era seco”, pensou ele num consolo, relaxando os músculos cansados. Procuraria o canto mais enxuto, seguro e longe do vento que o fustigava de entre as frestas. Sempre de frente para a única porta do cômodo. Sempre com os olhos a brigarem com a escuridão.
Sobre a única mesa inteira em um  canto da sala, havia uma velha garrafa e um copo ambos de barro cozido e sem cor. Ninho de aranhas pensou sem entusiasmo. Esgueirou-se por instinto, até dar-se conta da idiotice por estar absolutamente sozinho na sala. Endireitou-se e caminhou até a mesa. Ergueu a garrafa, desconfiado, sacudiu-a, meio cheia, meio vazia. Destampou-a e cheirou seu conteúdo.  Pois um pouco do líquido denso no copo de barro, depois de limpá-lo precariamente com a ponta dos dedos e cheirou de novo de forma mais longa e desconfiada. Certamente era vinho. Vinho temperado. Havia alguma coisa a mais além do líquido rubro e reconfortante, um cheiro amadeirado de ervas, indecifrável. Familiar, levemente familiar, mais indecifrável, ainda assim, indecifrável, alguma coisa perdida em sua memória.
Contra todos os clamores do bom-senso, mal aconselhado pelo frio, o cansaço e a fome pôs a ponta do dedo na bebida e levou-a aos lábios. Era doce, era bom, mas, bem no fundo, tinha um outro sabor escondido. Ervas? Mel? Frutas? Indecifrável. Levou um pequeno gole a boca disposto a cuspi-la  se decifrasse algum veneno. Mas a bebida era deliciosamente doce e quente. Primeiro ela seduziu seu paladar, depois todos os instintos de sobrevivência e desceu sedosa, quente e doce sem convite ou cerimônia. O segundo gole encheu seu corpo de calor e relaxamento. Era forte o vinho, forte e temperado, denso, rolava macio na boca e da boca garganta abaixo, até acender uma chama em seu coração, em eu ventre, entre suas pernas. Sua língua começou a entorpecer e sua mente a desanuviar-se. Deitou tranquilo em um monte de feno, longe da porta. Via sombras dançarem pelas paredes escuras. Sentindo as sombras descerem pelas paredes e arrastarem com mãos delicadas, seu corpo entorpecido, para mais dentro do fundo do salão. Sombras que acariciavam seu corpo, tocavam seu sexo por cima da roupa num movimentos sensual e continuo. Sentiu que suavemente era despido, devagar e continuamente tocado. Mãos quentes, macias, finas. Sentiu unhas arranharem seu peito carinhosamente. Embora nu não sentia mais frio. Lábios tocaram seu peito de forma ardorosa e quente.  Subiram ate tocar-lhe a boca exalando  um odor de  cravos e especiarias. Seios fartos e firmes se apoiaram sobre seu peito apertando-o.  Um corpo de mulher cobriu-o e sentiu a eletricidade fervilhar em sua carne. Movimentos fortes. Um corpo de fêmea era seu leito e cobertor. Lábios famintos percorriam seu corpo e beijavam-lhe a boca.  Lábios tomaram sua boca e seu sexo. Incendiaram sua alma, dominaram sua vontade. Um prazer infinito inundou-o. Só queria que não parasse mais. Só queria que não parasse nunca mais.  Enquanto seu sexo era tomado por muitos lábios macios e fogosos sua própria boca era invadida por seios pequenos e firmes, macios e entumecidos. Era a noite da sua vida. Era uma noite mágica. Então o vinho doce escorreu de seu corpo e foi tomado, bebido, lambido e festejado, sussurros roucos, gemidos e suspiros aumentavam o transe. E o delicioso perfume de ervas e cravos e flores, os diferentes calores, as diferentes peles, os cabelos diversos. Não queria parar de sonhar. Não queria parar de viver tudo aquilo. A noite passou,  a chuva passou e trouxe um amanhecer sonolento e tranquilo. Acordou, mas não levantou logo. Sentia o calor ainda no corpo de outros muitos corpos, de outros muitos calores. Sentou-se sem abrir os olhos. Quando o fez, a primeira coisa de que se deu conta foi de sua roupa limpa pendurada sobre a guarda de uma cadeira. Limpas e passadas. Suas botas brilhavam a um canto e entre elas uma espada embainhada. Na mesa ovos, bacon, alguma ave, leite. É estranho como medo e espanto andam de mãos dadas e brincam com nosso coração fazendo-o de peteca. Olhou para a cama, os lençóis e outra vez para a mesa, para as roupas. De resto tudo estava lá, menos a jarra de barro. Menos as sombras estranhas.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Senhor do tempo. ( Conto - 07)



Senhor do tempo.


Era de pequena estatura, numa casa feia e escura... A última casa da rua.
Ali morava o corcunda. Homem baixo e carrancudo, o melhor relojoeiro.  O vizinho mais estranho.  Tinha uma longa cabeleira desgrenhada e amarela. Nariz pontudo, fino e longo.  Um ar de desprezo por tudo e por todos. Era feio, antipático e velho. Era calado, olhar frio, felino.
Mas eu sabia. Eu sabia de tudo.
Ele não era só o relojoeiro solitário, com mau-hálito e olhos de cobra.
Ele era o senhor do tempo. Ele era quem através do grande relógio da praça comandava o tempo.
Eu sabia, eu sabia e tremia.
Um dia ele iria caminha até a torre mais alta onde estava o relógio centenário e com um passe de mágica faria o tempo parar.  Aprisionaria toda a cidade em uma longa noite sem fim.
Eu vigiava fascinado. Esperava o momento em que faria o movimento encantado. Sempre guardava as sobras de biscoitos do lanche, afinal, tinha que ter reservas para enfrentar a longa noite. Misteriosamente minhas reservas sempre sumiam. Ele deveria saber, sim ele sabia. O senhor do tempo me espreitava.
Um domingo chuvoso meu pai levou o nosso velho cuco a consertar. Era o momento.
Eu me esgueiraria por sua lojinha empoeirada, furtivo e astuto, descobriria seus segredos. Eu sozinho venceria o senhor do tempo. Eu seria o herói e certamente acima da torre do relógio fariam uma estatua em minha homenagem.
Entramos. A loja escura e vazia, empoeirada e fria. Fedia a tempos perdidos e horas mortas. Os tique-taques sonolentos nos conduziam ao torpor.. Armadilha. Papai entrou e tocou a avelhantada campainha no balcão. Passos arrastados, antigos, pesados. Um ranger de portas que levou séculos. Primeiro uma lufada de ar gelado entrou no pequeno recinto, depois o cheiro de primaveras findas e invernos longos.  Então ele entrou, puxando atrás de si os séculos todos.  Olhou-nos de forma  abjeta . Mas sua expressão mudou quando viu o cuco no balcão. Gelei. Seria aquela a última peça da maquina infernal que ele estaria montando no limiar do tempo?
 Meu pai ingenuamente trouxera para o monstro a derradeira peça de seu plano diabólico??? Gelei e estremeci.  Mãos frias e pálidas tocaram o cuco de forma quase libidinosa.
 Então era verdade. O cuco era a peça que faltava e ele dominaria a praça, o tempo e a eternidade. Controlaria as vidas, as estações,  os destinos de todos. Minha  garganta secara e meus olhos estavam congelados, fitos em cada movimento da figura espectral. Minha garganta emudecera e meu coração teimava em bater no ritmo daqueles relógios malditos.  Tentei apertar a mão de meu pai, implorar que saíssemos  dali as pressas levando o relógio enquanto era tempo. Mas o demoniozinho usou um artifício, um sortilégio, uma palavra mágica que hipnotiza a todos os adultos: “desconto”. E papai deixou-se ficar. Se olhasse para mim veria em todo o meu ser os alarmes de perigo.
 Então ele olhou para mim. Atravessou-me. Um olhar  glacial, cheio de zombarias. E se ele lesse pensamentos??? 
Sorriu e seu  disfarce desfez-se por  um segundo. E eu vi. Vi a face do monstro, vi a terrível verdade, ele não era humano. Minhas suspeitas estavam certas. Quando dei por mim, estava ao meu lado. Pouco mais alto do que eu,  olhando-me nos olhos, a boca semiaberta,  olhar enterrado nos meus. Percebi tudo. Ele queria não só parar o tempo mais roubar minha juventude. Toda juventude que existisse no mundo.
Quando falou, foi como se uma cripta se abrisse. Quer um doce, menino bonito??? Ele queria meus anos, minha vida, meu tempo. Estava a um passo  de roubar minha vida pelo preço de uma bala. Então  o mundo rodopiou e escureceu  ao meu redor, desfalecendo ainda pude ver o rosto de meu pai contorcido de preocupação e dor. Desmaiei. 
Acordei desesperado. Em minha cama, cercada pela família.  Num salto agoniado  gritei: Quanto tempo  falta???
 Quanto tempo ainda temos???
E desfaleci de novo.