quinta-feira, 20 de dezembro de 2018


CAPITÃO

Pediram a menina que levasse água para os cavalos atrás da taberna. Seguiram-na, eram homens brutos. Menina boba, inocente e frágil, mas obediente e prestativa. Alguns diziam-na aluada. Só os três animais asquerosos que a seguiram cheirando a vinho, suor e cavalos prestaram atenção ao corpo de menina que virava mulher. Agarraram a menina brincando com sua débil resistência. Tão frágil quanto os farrapos que cobriam seu corpo, seus seios agora nus. Uma bofetada ecoou no ar calando em suspenso a menina. Os três homens explodiram em gargalhadas salivantes. A única testemunha era a Lua, muda, cega e surda. Os homens babavam o rosto assustado da menina empapado de sangue que lhe escorria do nariz quebrado. A um passo de tomar o único penhor que seus trapos ainda escondiam ouviram perfeitamente audível um sussurro próximo:
- Deixem-na em paz, AGORA.
Uma voz muito calma, clara e determinada, temperada com autoridade e desprezo por aqueles ratos imundos. Era o capitão da guarda do rei, um cavaleiro negro. Não era o mais forte, nem o mais rápido ou ágil. Mais tinha muito das três virtudes somadas, o que o tornava um perigosíssimo espadachim, um matador impiedoso.
Não era muito tarde para pedir clemência, mas o cheiro da fêmea e do sangue, mais o vinho barato atiçava os demônios dentro dos homens, cujos os olhos felinos pareciam dizer, primeiro o sangue, depois a carne virgem.
A Lua vingativa emprestou um brilho fantasmagórico à espada do capitão quando esta serpenteou para fora da bainha a tempo de bloquear a estocada do primeiro atacante e abrir-lhe o ventre espalhando suas tripas imundas pelo chão. Um grito lancinante de dor encheu a noite de vermelho, e de ódio o coração dos dois outros canalhas. O segundo correu para o capitão na posição do falcão, espada vertical, cintilando sobre a cabeça, ao que foi imitada pelo guerreiro que no momento derradeiro escorregou por debaixo das pernas do cão, perfurando seu ventre tão profundamente que a ponta da espada varou seu corpo transpassando-o. O último homem de pé numa poça de sangue alheio, sentindo os últimos vapores do vinho sumirem-se de sua mente, percebeu com tardeza a situação em que estava. Morreria antes de correr, morreria antes de lutar, morreria antes de gritar.
Má sorte, má sorte trouxera aquela vadia magrela.
O capitão andou lentamente em sua direção... espada a frente do corpo olhos cravados. O infeliz cercado pelos gemidos de um e gritos do outros, despedidas infelizes... só repetia baixinho com lábios trêmulos e sem cor.. . - Má sorte, má sorte, má sorte…
E a espada escorregou de sua mão como manteiga. Caiu de joelhos, erguendo os olhos a tempo de ver o rodopio da espada que divorciou a cabeça de seu corpo seboso e cheirando a medo.
O capitão procurou o corpo menos ensopado de sangue e limpou sua espada calmamente. Só então procurou no escuro a menina. Caminhou para ela. Estranhamente mantinha a espada em punho. Abaixou, ela recuou trêmula, toda urinada. O sangue cobria-lhe metade do rosto. O nariz torto, grotescamente apontava para a direita...abraçou-a e um vento frio soprou no escuro. A Lua se escondeu. Ela jura que por um momento os olhos dele assumiram uma cor dourada profunda. E que ele não beijava seu rosto para consolá-la, mas lambia o sangue ainda quente em seu rostinho de menina. Num arroubo lançou-a de si e com uma voz espectral, mil fantasmas falando de dentro dele, rosnou baixinho
- Afasta-te mulher, salva-te enquanto tu podes.
E atirou-se na noite fria e escura. Como se a capa do vazio e da escuridão possuíssem seu corpo. Ela viu-se sozinha, trêmula, suja, seminua, e espancada... olhou ao redor, os corpos calados sem vida e riu, riu desesperadamente, gargalhadas loucas e então chorou ate desmaiar na escuridão.