segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Lilo




Lilo

Era louco. Louco, biruta, maluco, retardado.  As  vezes tinha acessos, dava ataques no meio da feira, babando, gritando, rolando no chão,  esperneando assustadoramente.  As  vezes subia nos telhados e ficava horas a fio nos beirais, imóvel, quieto como uma  gárgula. Mas às vezes. Ah! as vezes, prendia os olhos nos da gente e começava a balbuciar coisas, coisas passadas, coisas futuras, mas sempre coisas assustadoramente ocultas, íntimas e estranhas. Só os animais pareciam respeitá-lo. Calavam, ficavam imóveis em sua presença. Cachorros ferozes punham o rabo entre as pernas, baixavam os olhos e saiam de fininho ante a presença do menino louco.
Pernas curtas e magras, cabelos desgrenhados e sujos, rosto esfogueados e bochechas vermelhas. Nariz sempre a escorre. E aqueles olhos. Olhos de um azul profundo, contrastando com seus cabelos de fogo. Olhos de bruxa.
Gostava de dormir com os bichos, de andar com eles. As vezes passava dias na floresta. Menino maluquinho, menino enfeitiçado.
Dia de casamento. A vila pequenina envolta pela floresta,  estava em festa. A pequena Gertrudes ia se casar. O pai substituíra o fogo da forja pelo do churrasco. O cheiro de carnes temperadas dominara toda a praça enfeitada. Havia fartura de vinhos, sabores e cores. A filha do ferreiro ia se casar. E como em toda vila humilde cada um tratou de preparar alguma coisa para celebrar o casamento. Logo após a tomada dos votos pelo sacerdote que viera de longe o povo começou a deixar a capelinha e foi para a porta receber os agora casados nupcentes. Em meios aos gritos de felicitações e chuvas de arroz uma presença silencia a multidão. Pouco a pouco cada voz foi sendo calada pelo menino que se sobressaiu ao povaréu e parou em frente ao casal, bloqueando lhes a passagem. Seu corpinho magrela tremia todo e seus olhos grandes e azuis arregalados, vermelhos e tensos.
Balbuciava algo, naquela língua que só os imortais entendem. Apontava para o casal com aquela mãozinha suja de terra. E antes que alguém pudesse fazer alguma coisa caiu no chão com espasmos terríveis, gritando e debatendo-se como um possesso. Babando e arquejando, ninguém podia com aquele corpinho frágil que apontava para os céus e gritava, com olhos terrificados.
- Pedras, pedras, frio,  muito frio.... Pedras.
O sacerdote impaciente bradou do alto das escadas do templo que calassem o menino e o tirassem dali. Ainda tinha outras cerimônias para fazer em outros sítios e precisava forrar o estômago.
Mãos anônimas tomaram o menino. No exato instante em que um raio fendia o céu de alto a baixo e uma chuva de granizo precipitou sobre a vila inteira. Animais rebentaram em disparada, homens e mulheres procuravam abrigo a todo custo. Pequenas barraquinhas eram despedaçadas pelo gelo impiedoso. Era o caos. Gente ferida principalmente na cabeça implorava por abrigo e socorro. O céu se tomara de negro e ventos vorazes varriam a praça, a luzes e a festa.
O menino era fruto de um parto difícil. Onde em troca do bem-sucedido fora prometido aos velhos senhores das floresta, espíritos ancestrais a muito apartados da mente e dos santuários dos homens, embora ainda reverenciados pela velha parteira. A velha viera as pressas, vinha mancando, vinha praguejando, vinha destilando seu orgulho. Não falharia onde as parteiras mais novas e a nova religião falharam. Abriu a porta deste mundo para quase todos aqueles viventes. Passara uma vida, trazendo vida àquele povoado.
Nascera assim, parto difícil. Preço alto. Trouxeram lhe  o menino, levaram a mãe. Tudo em noite tempestuosa onde até as almas não encontravam abrigo.
Os espíritos da floresta levaram a mãe. O pai perdido em desgosto caiu no mundo. E o meninoi fora criado assim, um pouco por todos e muito por ninguém. Na casa de todos e na floresta de ninguém. Esse era LiLo, cabelo de fogo. Ninguém sabe quem lhe dera o nome. Ninguém sabe porque gostava do cemitério. LiLo, cabelos de fogo e olhos de céu.
Diziam que espíritos o acompanhavam e que as vezes falavam por meio dele. Para consolo de alguns e desespero de muitos, os espíritos falavam com eles. E ele via o que ninguém mais via. Talvez por isso fosse tão avesso e arredio. As vezes era criança e as vezes aquela coisa sem nome que habita o canto dos nossos olhos e a escuridão em nossas mentes. Um dia LiLo porá fogo no mundo, fogo nos homens. LiLo que corre com os cachorros, que corre com o vento. Senhor da tempestade.
Mas o fato era que LiLo também era criança e seria uma maldade sem par esquecer-se disso. Que por trás daqueles olhos misteriosos, aparência de cachorro de rua, tinha um menino que adora tortas de amora, correr descalço, pique-esconde, menos no cemitério, tomar banho de rio e outras pequenas travessuras. LiLo, LiLo, LiLo, filho de ninguém, filho de todos.
Ele sabia a melhor época para plantas e o melhor terreno. Sabia onde estava o  bicho que se perdia no mato e a ferramenta em casa. Sabia de ervas, sabia de estrelas. Sabia quem ia nascer e quem ia morrer.
Uma vez um cachorro de rua fora atropelado por uma carroça. LiLo abraçou-se com o bicho impedindo até ao último momento que fosse enterrado. Na  manha seguinte, menino e cachorro foram achados sobre a sepultura aberta, violado por mãos-meninas, abraçado ao cachorro ambos vivos e imundos. Mistérios de Lilo.

Água e Fogo






Água e Fogo.

Mestre Lao era completamente calvo, sua pele muito branca parecia um pergaminho onde o tempo e os homens escreveram muitas, muitas estórias. Era um mestre da espada, um mestre do combate. Manejava com perfeição várias armas, mas era o mestre da espada. Por ironia nunca trazia uma consigo, ao contrário, em sua cinta trazia um simples leque de uns 60 centímetros, poderoso o suficiente para bloquear o aço e sutil o bastante para cortar o vento. Dizia sempre aos seus discípulos “Há muitos tipos de espadas, feitas pelo mundo, feitas pelos homens. Algumas te cortarão ao meio rápido como um raio, outras te cortarão aos poucos tão lentamente que quando perceber será tarde demais para reagir”.  Embora fosse um mestre-guerreiro pregava a arte do não combate, “A Arte das Águas”. Desviar-se do combate, evitá-lo se possível; mas em caso contrário, irromper contra o adversário como uma tromba d’água cercá-lo por todos os lados, afogá-lo em golpes precisos, rápidos e letais. Um único golpe certeiro e mortal ou vários golpes nas partes certas do corpo causando grande dor e hemorragias. Como as águas procurar sempre o melhor caminho, o caminho mais curto, “A Dança das Águas”. As águas nunca mostram o seu profundo e quando mostram, são capazes de enganar a vista.
Quem se sentiria ameaçado por aquele homem de estatura mediana, feições delicadas e ar gentil?!?
As vestes brancas de mestre Lao contrastavam com as flores  dos pessegueiros, em copa e no chão. Caminhávamos lado a lado. O Mestre  tinha os passos firmes e serenos e eu cerimoniosamente o acompanhava como uma sombra, um ou dois passos atrás.
Mestre Lao, A rocha serene. Contasse que ele ficou três dias e três noites em pé, sobre uma rocha enquanto espadas de bambu eram quebradas em suas costas, pernas, pescoço, barriga, enfim, em  todo o seu corpo,  a meditação o tornava parte da própria rocha. Esse era mestre Lao, A rocha serena.
 Sua voz alçou voo junto com a brisa que tilintava a copa das árvores e, sem tirar os olhos da estrada perguntou como se falasse com o vento.
- Com quantos golpes se pode vencer um adversário? Mestre Lao não acreditava em inimigos, mas, em adversários. As circunstâncias podem colocar homens em lados opostos ou do mesmo lado, ou invariavelmente as duas coisas, como num jogo, onde inexoravelmente as peças  se movem ao sabor do vento.
- Há três maneiras, grande mestre, respondi de cabeça baixa,  respeitoso. Um único gole, se surpreendermos o adversário. Alguns golpes se formos mais hábeis que ele e muitos golpes para cansá-lo ou esperar que cometa algum erro, respondi. Tinha ouvido essa explicação do próprio mestre Lao, e me perguntava se estava me testando. Confesso que me senti um pouco ofendido, em pensar que meu mestre poderia pensar que eu esquecera tão rápido seu ensino..
Mas antes que continuasse remoendo a minha indignação, mestre Lao me interrompeu e disse:
- Você pode perceber um quarto caminho? Um quarto golpe? Estávamos próximos a curva do riacho que nos acompanhara em silencio por todo o percurso. Mas meio quilometro e estaríamos de volta ao mosteiro. Sem o impedimento das árvores que ladeavam toda a margem, o pequeno rio quebrava o silêncio e parecia querer sussurrar-me  resposta, mas eu não consegui entender seus sussurros. O vento veio ajudar e uma folha de pessegueiro tocou em meu rosto. Mas eu não conseguia decifrar os sinais.
Então mestre Lao falou...
- Não lutar. Desviar-se da espada. Desviar-se do próprio adversário. Não deixar que ele o arraste para a luta. Um bom mestre escolhe o momento de lutar. Escolhe o campo onde lutar, escolhe as armas e por fim, escolhe com quantos golpes vencerá o adversário. Parou ao meu lado silencioso e ainda com os olhos na estrada, queria ter certeza de que suas palavras penetraram fundo em minha mente. Então disse por fim:
- O fogo devora tudo a sua frente. A água sempre procura o melhor caminho para vencer seus obstáculos. Um bom mestre da espada sabe guardar o fogo no coração, mas se mover como as águas. É bom ser um mestre do fogo, mas é muito melhor ser um mestre das águas.
Então ele olhou- me com grande doçura e pôs a mão em meu ombro, respirou fundo e voltou a olhar para o infinito. Era o fim da lição. Porque a recebera e em particular e por que do próprio mestre  só o tempo e os pessegueiros saberiam dizer.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Figurinhas





 


Figurinhas.

O pai de um menino,  muito rico,  percebeu que todas as crianças, filhos e filhas de seus funcionários colecionavam o novo álbum de figurinha divertidas. Ao chegar a sua casa constatou que seu único filho também estava empolgado com a novidade e colecionava também. Imediatamente mandou que se telefonasse a fabrica de figurinhas e a comprou. Colocou toda  as figurinhas em caminhões e trouxe a sua mansão. Como era muito trabalhoso abrir todos os saquinhos, colar as figurinhas novas e separar as repetidas, escolheu a dedo cinco funcionários que o fizessem para o menino, abrissem os saquinhos, separassem as figurinhas, colassem no álbum e entregassem ao menino, com os cumprimentos do pai.
O que você achou do gesto desse pai? É claro que ele queria agradar ao seu filho. Queria que ele tivesse algo que nenhum menino até então tinha tido, ser o primeiro a completar aquele álbum de figurinhas. Mas do jeito que fez, tudo perdeu a graça, perdeu a cor e o brilho. Embora fosse um homem muito rico e cheio de recursos, escolheu a forma errada de ajudar seu filho. Tirou toda a graça, toda a mágica e diversão do brinquedo.
Agora pense. Se ele fosse mais inteligente, não procederia assim. Sentaria com o menino todas as tardes e compartilharia do prazer e da frustração de encontrar ou não as tão preciosas figurinhas. Passariam horas divertidas de gostosa expectativa. Ima verdadeira montanha russa de emoções, contida num saquinho de surpresas. A sensação de vitória ao completar uam página, de ter aquela figurinha difícil que ninguém mais tem.
Deus é muito mais pai e muito mais sábio. Jamais vai tirar o prazer da vida, dando a você tudo o que você pedir, quando pedir e do jeito que pedir.
Seu grande prazer é sentar-se ao seu lado e juntos abrirem cada saquinho de surpresas que a vida oferece. Alguns serão mágicos, outros frustrantes.
Mas o Grande Pai vai estar lá, colando cada figurinha com você, nesse fantástico álbum que é a vida.

FOGO do SERTÃO



FOGO do SERTÃO


Se chove fogo em pleno serrado
Se a própria brisa desvia de mim
Se não há sombra nem cais neste pasto
Só o calor que judia sem fim

Mais fogo eu trago em meu regaço
Mais arde a alma vermelho-carmim
Mas forte e quente em meu peito te abraço
Tua forma e imagem tua pele cetim.

De sequidão na garganta o pranto se foi....
De febre e sede se tange o clarim....
Não sei de mim, só sei do aço...
Que corta na pele...Que corta “ni” mim.

De dor e fogo o couro engelhado
De seco beijo a fina pele ardida
Obra de um sol de ódio agravado
De lábios secos sem prece parida.