segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Água e Fogo






Água e Fogo.

Mestre Lao era completamente calvo, sua pele muito branca parecia um pergaminho onde o tempo e os homens escreveram muitas, muitas estórias. Era um mestre da espada, um mestre do combate. Manejava com perfeição várias armas, mas era o mestre da espada. Por ironia nunca trazia uma consigo, ao contrário, em sua cinta trazia um simples leque de uns 60 centímetros, poderoso o suficiente para bloquear o aço e sutil o bastante para cortar o vento. Dizia sempre aos seus discípulos “Há muitos tipos de espadas, feitas pelo mundo, feitas pelos homens. Algumas te cortarão ao meio rápido como um raio, outras te cortarão aos poucos tão lentamente que quando perceber será tarde demais para reagir”.  Embora fosse um mestre-guerreiro pregava a arte do não combate, “A Arte das Águas”. Desviar-se do combate, evitá-lo se possível; mas em caso contrário, irromper contra o adversário como uma tromba d’água cercá-lo por todos os lados, afogá-lo em golpes precisos, rápidos e letais. Um único golpe certeiro e mortal ou vários golpes nas partes certas do corpo causando grande dor e hemorragias. Como as águas procurar sempre o melhor caminho, o caminho mais curto, “A Dança das Águas”. As águas nunca mostram o seu profundo e quando mostram, são capazes de enganar a vista.
Quem se sentiria ameaçado por aquele homem de estatura mediana, feições delicadas e ar gentil?!?
As vestes brancas de mestre Lao contrastavam com as flores  dos pessegueiros, em copa e no chão. Caminhávamos lado a lado. O Mestre  tinha os passos firmes e serenos e eu cerimoniosamente o acompanhava como uma sombra, um ou dois passos atrás.
Mestre Lao, A rocha serene. Contasse que ele ficou três dias e três noites em pé, sobre uma rocha enquanto espadas de bambu eram quebradas em suas costas, pernas, pescoço, barriga, enfim, em  todo o seu corpo,  a meditação o tornava parte da própria rocha. Esse era mestre Lao, A rocha serena.
 Sua voz alçou voo junto com a brisa que tilintava a copa das árvores e, sem tirar os olhos da estrada perguntou como se falasse com o vento.
- Com quantos golpes se pode vencer um adversário? Mestre Lao não acreditava em inimigos, mas, em adversários. As circunstâncias podem colocar homens em lados opostos ou do mesmo lado, ou invariavelmente as duas coisas, como num jogo, onde inexoravelmente as peças  se movem ao sabor do vento.
- Há três maneiras, grande mestre, respondi de cabeça baixa,  respeitoso. Um único gole, se surpreendermos o adversário. Alguns golpes se formos mais hábeis que ele e muitos golpes para cansá-lo ou esperar que cometa algum erro, respondi. Tinha ouvido essa explicação do próprio mestre Lao, e me perguntava se estava me testando. Confesso que me senti um pouco ofendido, em pensar que meu mestre poderia pensar que eu esquecera tão rápido seu ensino..
Mas antes que continuasse remoendo a minha indignação, mestre Lao me interrompeu e disse:
- Você pode perceber um quarto caminho? Um quarto golpe? Estávamos próximos a curva do riacho que nos acompanhara em silencio por todo o percurso. Mas meio quilometro e estaríamos de volta ao mosteiro. Sem o impedimento das árvores que ladeavam toda a margem, o pequeno rio quebrava o silêncio e parecia querer sussurrar-me  resposta, mas eu não consegui entender seus sussurros. O vento veio ajudar e uma folha de pessegueiro tocou em meu rosto. Mas eu não conseguia decifrar os sinais.
Então mestre Lao falou...
- Não lutar. Desviar-se da espada. Desviar-se do próprio adversário. Não deixar que ele o arraste para a luta. Um bom mestre escolhe o momento de lutar. Escolhe o campo onde lutar, escolhe as armas e por fim, escolhe com quantos golpes vencerá o adversário. Parou ao meu lado silencioso e ainda com os olhos na estrada, queria ter certeza de que suas palavras penetraram fundo em minha mente. Então disse por fim:
- O fogo devora tudo a sua frente. A água sempre procura o melhor caminho para vencer seus obstáculos. Um bom mestre da espada sabe guardar o fogo no coração, mas se mover como as águas. É bom ser um mestre do fogo, mas é muito melhor ser um mestre das águas.
Então ele olhou- me com grande doçura e pôs a mão em meu ombro, respirou fundo e voltou a olhar para o infinito. Era o fim da lição. Porque a recebera e em particular e por que do próprio mestre  só o tempo e os pessegueiros saberiam dizer.

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