quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Moinho



Moinho

Andara em círculo boa parte da noite. Sabia guiar-se pelas estrelas, quando havia estrelas para se guiar. A chuva era  intermitente e pesada e o céu não se abria. Sem cavalo, ração ou um cobertor velho para se enrolar.  A chuva encharcara todo graveto e palha que encontrara.  Na caminhada, a esmo, achou um velho tronco oco e ali se aninhou. Mas bem a chuva recomeçou percebeu a inutilidade do abrigo. Caminhou na noite escura e chuvosa sem rumo. Não podia ficar parado ou congelaria. Caminhou sem entusiasmo ou direção até tropeçar num ruído estranho e contínuo. À distância, um velho moinho, caindo aos pedaços, de aspecto lúgubre se destacava nas sombras. Das oito janelas toscas dispostas quatro a quatro em dois andares apena uma estava precariamente iluminada. O som estranho, quase um gemido, vinha do  fantasmagórico  dançar das pás no vazio escuro.
Apertou o passo e os olhos, já  sentindo na pele o gosto do calor e da palha macia a abrigar-lhe o corpo. Mas a alguns passos da porta congelou seus movimentos e jogou-se de bruços no terreno lamacento. Toda espécie de criaturas e bichos teriam tido a mesma ideia de esconder-se da tempestade ali. Aquilo poderia ser um campo minado. Estava desarmado, faminto, cansado. Seu corpo gélido não responderia com destreza e força a um ataque mesmo da menor das ameaças. Mordeu os lábios e crispou os olhos, diante do pensamento de um ataque. Ali, naquela situação o melhor a fazer era confiar em seus ouvidos e de gatinhas aproximar-se da porta. Era uma porta velha e pesada como a noite. Antes que sua mão alcançasse a maçaneta o vento frio e úmido fez-lhe as honras entreabrindo a porta que rangeu sobre seus eixos num convite amargo. Agora tinha que entrar, perdera o elemento surpresa, empertigou-se e deu um passo, depois outro e mais outro, estava dentro. Mais uma vez o vento zombeteiro pregou-lhe uma peça batendo a porta violentamente contra sua nuca fazendo-o cambalear atônito para dentro do recinto e da escuridão.
Ficou agachado e imóvel. A boca cheia de feno e terra amaldiçoava a noite, o vento, sua sorte, a chuva. Silêncio. O interior cheirava a mofo e sebo de carneiro, proveniente da vela tosca e grossa que brigava com a escuridão tentando inutilmente iluminar o recinto. No mais, tudo era uma mixórdia, um  depósito de guaxinins. Mobilhas quebradas,  feno, sacos de areia, jarros e cacos de jarros espalhados pelo chão e o gemido sinistro da pedra de moer movida pelas pás que giravam no alto do moinho. “Bem, pelo menos era seco”, pensou ele num consolo, relaxando os músculos cansados. Procuraria o canto mais enxuto, seguro e longe do vento que o fustigava de entre as frestas. Sempre de frente para a única porta do cômodo. Sempre com os olhos a brigarem com a escuridão.
Sobre a única mesa inteira em um  canto da sala, havia uma velha garrafa e um copo ambos de barro cozido e sem cor. Ninho de aranhas pensou sem entusiasmo. Esgueirou-se por instinto, até dar-se conta da idiotice por estar absolutamente sozinho na sala. Endireitou-se e caminhou até a mesa. Ergueu a garrafa, desconfiado, sacudiu-a, meio cheia, meio vazia. Destampou-a e cheirou seu conteúdo.  Pois um pouco do líquido denso no copo de barro, depois de limpá-lo precariamente com a ponta dos dedos e cheirou de novo de forma mais longa e desconfiada. Certamente era vinho. Vinho temperado. Havia alguma coisa a mais além do líquido rubro e reconfortante, um cheiro amadeirado de ervas, indecifrável. Familiar, levemente familiar, mais indecifrável, ainda assim, indecifrável, alguma coisa perdida em sua memória.
Contra todos os clamores do bom-senso, mal aconselhado pelo frio, o cansaço e a fome pôs a ponta do dedo na bebida e levou-a aos lábios. Era doce, era bom, mas, bem no fundo, tinha um outro sabor escondido. Ervas? Mel? Frutas? Indecifrável. Levou um pequeno gole a boca disposto a cuspi-la  se decifrasse algum veneno. Mas a bebida era deliciosamente doce e quente. Primeiro ela seduziu seu paladar, depois todos os instintos de sobrevivência e desceu sedosa, quente e doce sem convite ou cerimônia. O segundo gole encheu seu corpo de calor e relaxamento. Era forte o vinho, forte e temperado, denso, rolava macio na boca e da boca garganta abaixo, até acender uma chama em seu coração, em eu ventre, entre suas pernas. Sua língua começou a entorpecer e sua mente a desanuviar-se. Deitou tranquilo em um monte de feno, longe da porta. Via sombras dançarem pelas paredes escuras. Sentindo as sombras descerem pelas paredes e arrastarem com mãos delicadas, seu corpo entorpecido, para mais dentro do fundo do salão. Sombras que acariciavam seu corpo, tocavam seu sexo por cima da roupa num movimentos sensual e continuo. Sentiu que suavemente era despido, devagar e continuamente tocado. Mãos quentes, macias, finas. Sentiu unhas arranharem seu peito carinhosamente. Embora nu não sentia mais frio. Lábios tocaram seu peito de forma ardorosa e quente.  Subiram ate tocar-lhe a boca exalando  um odor de  cravos e especiarias. Seios fartos e firmes se apoiaram sobre seu peito apertando-o.  Um corpo de mulher cobriu-o e sentiu a eletricidade fervilhar em sua carne. Movimentos fortes. Um corpo de fêmea era seu leito e cobertor. Lábios famintos percorriam seu corpo e beijavam-lhe a boca.  Lábios tomaram sua boca e seu sexo. Incendiaram sua alma, dominaram sua vontade. Um prazer infinito inundou-o. Só queria que não parasse mais. Só queria que não parasse nunca mais.  Enquanto seu sexo era tomado por muitos lábios macios e fogosos sua própria boca era invadida por seios pequenos e firmes, macios e entumecidos. Era a noite da sua vida. Era uma noite mágica. Então o vinho doce escorreu de seu corpo e foi tomado, bebido, lambido e festejado, sussurros roucos, gemidos e suspiros aumentavam o transe. E o delicioso perfume de ervas e cravos e flores, os diferentes calores, as diferentes peles, os cabelos diversos. Não queria parar de sonhar. Não queria parar de viver tudo aquilo. A noite passou,  a chuva passou e trouxe um amanhecer sonolento e tranquilo. Acordou, mas não levantou logo. Sentia o calor ainda no corpo de outros muitos corpos, de outros muitos calores. Sentou-se sem abrir os olhos. Quando o fez, a primeira coisa de que se deu conta foi de sua roupa limpa pendurada sobre a guarda de uma cadeira. Limpas e passadas. Suas botas brilhavam a um canto e entre elas uma espada embainhada. Na mesa ovos, bacon, alguma ave, leite. É estranho como medo e espanto andam de mãos dadas e brincam com nosso coração fazendo-o de peteca. Olhou para a cama, os lençóis e outra vez para a mesa, para as roupas. De resto tudo estava lá, menos a jarra de barro. Menos as sombras estranhas.

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