Moinho
Andara em círculo boa parte da
noite. Sabia guiar-se pelas estrelas, quando havia estrelas para se guiar. A
chuva era intermitente e pesada e o céu
não se abria. Sem cavalo, ração ou um cobertor velho para se enrolar. A chuva encharcara todo graveto e palha que
encontrara. Na caminhada, a esmo, achou
um velho tronco oco e ali se aninhou. Mas bem a chuva recomeçou percebeu a
inutilidade do abrigo. Caminhou na noite escura e chuvosa sem rumo. Não podia
ficar parado ou congelaria. Caminhou sem entusiasmo ou direção até tropeçar num
ruído estranho e contínuo. À distância, um velho moinho, caindo aos pedaços, de
aspecto lúgubre se destacava nas sombras. Das oito janelas toscas dispostas
quatro a quatro em dois andares apena uma estava precariamente iluminada. O som
estranho, quase um gemido, vinha do fantasmagórico dançar das pás no vazio escuro.
Apertou o passo e os olhos,
já sentindo na pele o gosto do calor e
da palha macia a abrigar-lhe o corpo. Mas a alguns passos da porta congelou
seus movimentos e jogou-se de bruços no terreno lamacento. Toda espécie de
criaturas e bichos teriam tido a mesma ideia de esconder-se da tempestade ali.
Aquilo poderia ser um campo minado. Estava desarmado, faminto, cansado. Seu
corpo gélido não responderia com destreza e força a um ataque mesmo da menor
das ameaças. Mordeu os lábios e crispou os olhos, diante do pensamento de um
ataque. Ali, naquela situação o melhor a fazer era confiar em seus ouvidos e de
gatinhas aproximar-se da porta. Era uma porta velha e pesada como a noite.
Antes que sua mão alcançasse a maçaneta o vento frio e úmido fez-lhe as honras entreabrindo
a porta que rangeu sobre seus eixos num convite amargo. Agora tinha que entrar,
perdera o elemento surpresa, empertigou-se e deu um passo, depois outro e mais
outro, estava dentro. Mais uma vez o vento zombeteiro pregou-lhe uma peça
batendo a porta violentamente contra sua nuca fazendo-o cambalear atônito para
dentro do recinto e da escuridão.
Ficou agachado e imóvel. A boca
cheia de feno e terra amaldiçoava a noite, o vento, sua sorte, a chuva.
Silêncio. O interior cheirava a mofo e sebo de carneiro, proveniente da vela
tosca e grossa que brigava com a escuridão tentando inutilmente iluminar o
recinto. No mais, tudo era uma mixórdia, um
depósito de guaxinins. Mobilhas quebradas, feno, sacos de areia, jarros e cacos de
jarros espalhados pelo chão e o gemido sinistro da pedra de moer movida pelas
pás que giravam no alto do moinho. “Bem, pelo menos era seco”, pensou ele num
consolo, relaxando os músculos cansados. Procuraria o canto mais enxuto, seguro
e longe do vento que o fustigava de entre as frestas. Sempre de frente para a
única porta do cômodo. Sempre com os olhos a brigarem com a escuridão.
Sobre a única mesa inteira em um canto da sala, havia uma velha garrafa e um
copo ambos de barro cozido e sem cor. Ninho de aranhas pensou sem entusiasmo.
Esgueirou-se por instinto, até dar-se conta da idiotice por estar absolutamente
sozinho na sala. Endireitou-se e caminhou até a mesa. Ergueu a garrafa, desconfiado,
sacudiu-a, meio cheia, meio vazia. Destampou-a e cheirou seu conteúdo. Pois um pouco do líquido denso no copo de
barro, depois de limpá-lo precariamente com a ponta dos dedos e cheirou de novo
de forma mais longa e desconfiada. Certamente era vinho. Vinho temperado. Havia
alguma coisa a mais além do líquido rubro e reconfortante, um cheiro amadeirado
de ervas, indecifrável. Familiar, levemente familiar, mais indecifrável, ainda
assim, indecifrável, alguma coisa perdida em sua memória.
Contra todos os clamores do
bom-senso, mal aconselhado pelo frio, o cansaço e a fome pôs a ponta do dedo na
bebida e levou-a aos lábios. Era doce, era bom, mas, bem no fundo, tinha um
outro sabor escondido. Ervas? Mel? Frutas? Indecifrável. Levou um pequeno gole a
boca disposto a cuspi-la se decifrasse
algum veneno. Mas a bebida era deliciosamente doce e quente. Primeiro ela
seduziu seu paladar, depois todos os instintos de sobrevivência e desceu sedosa,
quente e doce sem convite ou cerimônia. O segundo gole encheu seu corpo de
calor e relaxamento. Era forte o vinho, forte e temperado, denso, rolava macio
na boca e da boca garganta abaixo, até acender uma chama em seu coração, em eu
ventre, entre suas pernas. Sua língua começou a entorpecer e sua mente a
desanuviar-se. Deitou tranquilo em um monte de feno, longe da porta. Via
sombras dançarem pelas paredes escuras. Sentindo as sombras descerem pelas
paredes e arrastarem com mãos delicadas, seu corpo entorpecido, para mais dentro
do fundo do salão. Sombras que acariciavam seu corpo, tocavam seu sexo por cima
da roupa num movimentos sensual e continuo. Sentiu que suavemente era despido,
devagar e continuamente tocado. Mãos quentes, macias, finas. Sentiu unhas
arranharem seu peito carinhosamente. Embora nu não sentia mais frio. Lábios
tocaram seu peito de forma ardorosa e quente.
Subiram ate tocar-lhe a boca exalando um odor de cravos e especiarias. Seios fartos e firmes se
apoiaram sobre seu peito apertando-o. Um
corpo de mulher cobriu-o e sentiu a eletricidade fervilhar em sua carne.
Movimentos fortes. Um corpo de fêmea era seu leito e cobertor. Lábios famintos
percorriam seu corpo e beijavam-lhe a boca.
Lábios tomaram sua boca e seu sexo. Incendiaram sua alma, dominaram sua
vontade. Um prazer infinito inundou-o. Só queria que não parasse mais. Só
queria que não parasse nunca mais.
Enquanto seu sexo era tomado por muitos lábios macios e fogosos sua
própria boca era invadida por seios pequenos e firmes, macios e entumecidos.
Era a noite da sua vida. Era uma noite mágica. Então o vinho doce escorreu de
seu corpo e foi tomado, bebido, lambido e festejado, sussurros roucos, gemidos
e suspiros aumentavam o transe. E o delicioso perfume de ervas e cravos e
flores, os diferentes calores, as diferentes peles, os cabelos diversos. Não
queria parar de sonhar. Não queria parar de viver tudo aquilo. A noite
passou, a chuva passou e trouxe um
amanhecer sonolento e tranquilo. Acordou, mas não levantou logo. Sentia o calor
ainda no corpo de outros muitos corpos, de outros muitos calores. Sentou-se sem
abrir os olhos. Quando o fez, a primeira coisa de que se deu conta foi de sua
roupa limpa pendurada sobre a guarda de uma cadeira. Limpas e passadas. Suas
botas brilhavam a um canto e entre elas uma espada embainhada. Na mesa ovos, bacon,
alguma ave, leite. É estranho como medo e espanto andam de mãos dadas e brincam
com nosso coração fazendo-o de peteca. Olhou para a cama, os lençóis e outra
vez para a mesa, para as roupas. De resto tudo estava lá, menos a jarra de
barro. Menos as sombras estranhas.
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