quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Arado ( Conto - 02)



ARADO


01
Atrás da casa, depois da cerquinha de madeira branca, que já não era tão branca assim, ficava nossa plantação de milho, depois vinha o bosque e depois o rio borbulhante que marca o fim dos domínios de minha família. Mamãe chamava o bosque de “o lado selvagem” da propriedade. Eu chamava de “o lado encantado”. Nutríamos esta guerra secreta de conceitos e intenções. Lá era para onde eu nunca deveria ir. Mas era para onde eu sempre ia, ainda que em pensamentos, em fugas rebeldes ou em estratégicas retiradas. O fim da propriedade marcava o inicio, a fronteira de meu mundo de sonhos e fantasias.

02
 Também tinha um poço, meu amigo de meninices, poço velho, velho e escuro e silente. Ele bebia minhas lágrimas e meus segredos e não me negava o esquecimento. Sua fundura me envolvia e me levava embora. Ali meus soluços se perdiam, minha voz esganiçada de moleca ganhava volume e cores misteriosas. Era bonito quando refletia o céu e trazia-o para perto de mim,  bem na palma da minhas mãos pequeninas.

03
Eu estava ali sentada sobre a cerca, olhando o homem, a vaca e o arado. Imaginando a quilha de um navio cortando o mar. Observando a harmonia entre homem, terra e animal. Vendo seu corpo negro, suado; músculos tão duros quanto o arado que singrava a terra. Vendo os contornos de sua pele escura bebendo os raios de sol e cintilando em coágulos coloridos. Ele passou rente e sorriu para mim. Um sorriso cheio de promessas como a terra que se abria para o beijo do aço.
A vaca ia  na frente, o homem atrás. Ela era malhada, um tabuleiro de xadrez divertido e maluco. Malhada brincava com suas manchas, acho até que mudavam de lugar só para me confundir.  Contrastava com o homem feito de ébano, um homem feito de noites sob o sol da primavera. As gotas de suor que lhe escorriam do corpo pareciam estrelas faiscantes, lágrimas do sol. Homem  e animal, terra e arado o conjunto perfeito.

04
Foi quando o grito de dor e espanto sepultou em meus olhos toda a cor, todo o brilho, toda luz.
 Suas costas, suas costas...
As costas dele, que coisa horrível...
Minha mãe correu em nossa direção gritando desesperadamente, gritando para o homem se afastar de mim. Era como o estridente apito de um trem que se aproximava. Tudo era desesperadamente lento, como num filme antigo. Imagens congeladas e borradas. Minha mãe arfante, saltando sobre mim, apertando-me contra seu corpo com um braço e empunhando a arma com o outro.
Então eu entendi. Entendi onde estavam as outras cores que  naquele homem  eu não via. Estavam enterradas por trás daquela odiosa camada de dor e mágoa. De corpo ferido de alma ferida. Alma esmagada numa mó de moinho até virar farinha fina. Guerras vencida, guerras perdidas. Guerras são sempre guerras, sepultadas ou paridas. Aquele dorso feito terra arada, sulcada pela vida, arado pelo ódio. Que coisa poderia brotar daquela terra? O que pode nascer de sangue, lágrima e dor? Suas costas eram um emaranhado profundo de vergões enormes, grossos, tratados a ferro e sal. Marcas que jamais  abandonariam, seu corpo, sua alma.

05
Gritei horrorizada. Minha mãe, no jardim da frente de casa, num sobressalto veio correndo acudir-me. Ao passar pela cozinha, alarmada,  pegou a velha carabina de  cano duplo e disparou, correndo, para onde eu estava. Num salto se pôs ao meu lado, gritando para que o homem se afastasse de mim. Com um braço apontando a carabina e com o outro colhendo-me ao seu encontro. O homem arqueou-se como um animal e o que vi me deu tanto medo quanto as macabras cicatrizes. Olhos felinos, olhos de fogo, prontos a saltar sobre nós ou fugir desabalados. Foram segundos tensos.  Ate que minha mãe viu para onde minha mão trêmula apontava e deixou a arma cair pesadamente no chão, boquiaberta. Lágrimas quentes corriam por meu rosto. O homem empertigou-se lentamente.

06
Marcas, marcas e mais marcas, monstruosos vergões enormes e profundos, num emaranhado louco de cicatrizes. Torturas. Não pude conter o grito de horror e espanto, nem colocando a mão sobre minha boca sem cor. Meu corpo tremia sobre a cerquinha, mas ela não parecia perceber. Sua alma estava obscurecida pela dor. Brutalidade.

O homem olhou para nós, corpo tenso, olhos cerrados no cano da arma. Onde havia um rosto amigo, tinha agora uma grotesca máscara, como se mil demônios possuíssem aquela face.
Minha mãe de olhos febris, corpo agitado, tremia junta a mim. Apertando-me com força, rugiu entre os dentes, “afaste-se de minha filha”. O homem continuava imóvel, olhos de puro fel. Podia sentir na garganta o gosto amargo da tragédia. Estômago esmurrado. Então apontei para ele, mãos frias e trêmulas apontavam para suas costas nuas em partes visíveis. Ele pareceu compreender mais do que minha mãe. Virou-se lentamente, sem tirar os olhos do coração da arma. Arma que despencou das mãos de mamãe quando ela também viu
Tudo se passou no estranho segundo em que meu grito alcançou a porta da frente e voltou nos calcanhares desesperados e armados de minha mãe. Agora nós duas como duas bêbedas tremíamos debaixo daquele sol causticante.  A  arma caída no solo como o arado, inertes. Testemunhas de ferro das prisões da carne. O homem foi lentamente aprumando o corpo. Relaxando os músculos até que aprumado soltou um  profundo ronco que virou um grito de comando primitivo só entendido pela terra e por malhada. O tempo voltou ao normal. A velha vaquinha sem susto voltou a puxar homem e arado, carne e aço. Sem olhar para trás, sem nada a dizer, ele se afastou lentamente.  Arrumando sua camisa surrada, enquanto se afastava,  sobre aquela terra amarga, arada a ferro e a fogo.
Naquela noite, mamãe foi ao celeiro. Tinha uma bandeja de comida e um pedido de desculpas. Mas não encontrou nem garfos nem ouvidos.

07
As duas mulheres encaravam boquiabertas o homem. Calculando-lhe a dor, ouvindo com a alma os ecos da agonia esculpida naquele dorso de tão abominável aparência. Agora ela sabia para onde tinham ido as matizes naquele homem foram enterradas naquele abismo.


08
A época do plantio tinha chegado e tinha sido um longo, longo, longo e preguiçoso inverno.
Não eram mais que seis horas da manha e o cativante sorriso do sol arrastou-me para fora da cama.
Ele trabalhava no campo. Tínhamos uma plantação de milho nos fundos da casa, depois dela vinha o bosque e depois o rio borbulhante.
Ele tinha o dorso nu e sua pele negra e suada cintilava sob o sol.  Na cintura a camisa úmida enrolada como uma cinta. Seus músculos eram fortes, como forte era sua determinação em retirar da terra sonolenta as pepitas  douradas tão preciosas para nós.
Eu estava sentada na cerca branca, balançando os pés, brincando  com a ponta dos cabelos. Foi quando eu vi e o tempo se quebrou em pedaços e o inverno voltou.







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