ARADO
01
Atrás
da casa, depois da cerquinha de madeira branca, que já não era tão branca
assim, ficava nossa plantação de milho, depois vinha o bosque e depois o rio
borbulhante que marca o fim dos domínios de minha família. Mamãe chamava o
bosque de “o lado selvagem” da propriedade. Eu chamava de “o lado encantado”.
Nutríamos esta guerra secreta de conceitos e intenções. Lá era para onde eu
nunca deveria ir. Mas era para onde eu sempre ia, ainda que em pensamentos, em
fugas rebeldes ou em estratégicas retiradas. O fim da propriedade marcava o
inicio, a fronteira de meu mundo de sonhos e fantasias.
02
Também tinha um poço, meu amigo de meninices,
poço velho, velho e escuro e silente. Ele bebia minhas lágrimas e meus segredos
e não me negava o esquecimento. Sua fundura me envolvia e me levava embora. Ali
meus soluços se perdiam, minha voz esganiçada de moleca ganhava volume e cores
misteriosas. Era bonito quando refletia o céu e trazia-o para perto de
mim, bem na palma da minhas mãos
pequeninas.
03
Eu
estava ali sentada sobre a cerca, olhando o homem, a vaca e o arado. Imaginando
a quilha de um navio cortando o mar. Observando a harmonia entre homem, terra e
animal. Vendo seu corpo negro, suado; músculos tão duros quanto o arado que
singrava a terra. Vendo os contornos de sua pele escura bebendo os raios de sol
e cintilando em coágulos coloridos. Ele passou rente e sorriu para mim. Um
sorriso cheio de promessas como a terra que se abria para o beijo do aço.
A
vaca ia na frente, o homem atrás. Ela
era malhada, um tabuleiro de xadrez divertido e maluco. Malhada brincava com
suas manchas, acho até que mudavam de lugar só para me confundir. Contrastava com o homem feito de ébano, um
homem feito de noites sob o sol da primavera. As gotas de suor que lhe
escorriam do corpo pareciam estrelas faiscantes, lágrimas do sol. Homem e animal, terra e arado o conjunto perfeito.
04
Foi
quando o grito de dor e espanto sepultou em meus olhos toda a cor, todo o
brilho, toda luz.
Suas costas, suas costas...
As
costas dele, que coisa horrível...
Minha
mãe correu em nossa direção gritando desesperadamente, gritando para o homem se
afastar de mim. Era como o estridente apito de um trem que se aproximava. Tudo
era desesperadamente lento, como num filme antigo. Imagens congeladas e
borradas. Minha mãe arfante, saltando sobre mim, apertando-me contra seu corpo
com um braço e empunhando a arma com o outro.
Então
eu entendi. Entendi onde estavam as outras cores que naquele homem
eu não via. Estavam enterradas por trás daquela odiosa camada de dor e
mágoa. De corpo ferido de alma ferida. Alma esmagada numa mó de moinho até
virar farinha fina. Guerras vencida, guerras perdidas. Guerras são sempre
guerras, sepultadas ou paridas. Aquele dorso feito terra arada, sulcada pela
vida, arado pelo ódio. Que coisa poderia brotar daquela terra? O que pode
nascer de sangue, lágrima e dor? Suas costas eram um emaranhado profundo de
vergões enormes, grossos, tratados a ferro e sal. Marcas que jamais abandonariam, seu corpo, sua alma.
05
Gritei
horrorizada. Minha mãe, no jardim da frente de casa, num sobressalto veio
correndo acudir-me. Ao passar pela cozinha, alarmada, pegou a velha carabina de cano duplo e disparou, correndo, para onde eu
estava. Num salto se pôs ao meu lado, gritando para que o homem se afastasse de
mim. Com um braço apontando a carabina e com o outro colhendo-me ao seu encontro.
O homem arqueou-se como um animal e o que vi me deu tanto medo quanto as
macabras cicatrizes. Olhos felinos, olhos de fogo, prontos a saltar sobre nós
ou fugir desabalados. Foram segundos tensos.
Ate que minha mãe viu para onde minha mão trêmula apontava e deixou a
arma cair pesadamente no chão, boquiaberta. Lágrimas quentes corriam por meu
rosto. O homem empertigou-se lentamente.
06
Marcas,
marcas e mais marcas, monstruosos vergões enormes e profundos, num emaranhado
louco de cicatrizes. Torturas. Não pude conter o grito de horror e espanto, nem
colocando a mão sobre minha boca sem cor. Meu corpo tremia sobre a cerquinha, mas ela não parecia perceber. Sua alma estava obscurecida
pela dor. Brutalidade.
O
homem olhou para nós, corpo tenso, olhos cerrados no cano da arma. Onde havia
um rosto amigo, tinha agora uma grotesca máscara, como se mil demônios
possuíssem aquela face.
Minha
mãe de olhos febris, corpo agitado, tremia junta a mim. Apertando-me com força,
rugiu entre os dentes, “afaste-se de minha filha”. O homem continuava imóvel,
olhos de puro fel. Podia sentir na garganta o gosto amargo da tragédia.
Estômago esmurrado. Então apontei para ele, mãos frias e trêmulas apontavam
para suas costas nuas em partes visíveis. Ele
pareceu compreender mais do que minha mãe. Virou-se lentamente, sem tirar os
olhos do coração da arma. Arma que despencou das mãos de mamãe quando ela
também viu
Tudo
se passou no estranho segundo em que meu grito alcançou a porta da frente e
voltou nos calcanhares desesperados e armados de minha mãe. Agora nós duas como
duas bêbedas tremíamos debaixo daquele sol causticante. A arma
caída no solo como o arado, inertes. Testemunhas de ferro das prisões da carne.
O homem foi lentamente aprumando o corpo. Relaxando os músculos até que
aprumado soltou um profundo ronco que
virou um grito de comando primitivo só entendido pela terra e por malhada. O
tempo voltou ao normal. A velha vaquinha sem susto voltou a puxar homem e
arado, carne e aço. Sem olhar para trás, sem nada a dizer, ele se afastou
lentamente. Arrumando sua camisa
surrada, enquanto se afastava, sobre
aquela terra amarga, arada a ferro e a fogo.
Naquela
noite, mamãe foi ao celeiro. Tinha uma bandeja de comida e um pedido de
desculpas. Mas não encontrou nem garfos nem ouvidos.
07
As
duas mulheres encaravam boquiabertas o homem. Calculando-lhe a dor, ouvindo com
a alma os ecos da agonia esculpida naquele dorso de tão abominável aparência.
Agora ela sabia para onde tinham ido as matizes naquele homem foram enterradas
naquele abismo.
08
A época do
plantio tinha chegado e tinha sido um longo, longo, longo e preguiçoso inverno.
Não eram mais
que seis horas da manha e o cativante sorriso do sol arrastou-me para fora da
cama.
Ele trabalhava
no campo. Tínhamos uma plantação de milho nos fundos da casa, depois dela vinha
o bosque e depois o rio borbulhante.
Ele tinha o
dorso nu e sua pele negra e suada cintilava sob o sol. Na cintura a camisa úmida enrolada como uma
cinta. Seus músculos eram fortes, como forte era sua determinação em retirar da
terra sonolenta as pepitas douradas tão
preciosas para nós.
Eu estava
sentada na cerca branca, balançando os pés, brincando com a ponta dos cabelos. Foi quando eu vi e o
tempo se quebrou em pedaços e o inverno voltou.
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