quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Senhor do tempo. ( Conto - 07)



Senhor do tempo.


Era de pequena estatura, numa casa feia e escura... A última casa da rua.
Ali morava o corcunda. Homem baixo e carrancudo, o melhor relojoeiro.  O vizinho mais estranho.  Tinha uma longa cabeleira desgrenhada e amarela. Nariz pontudo, fino e longo.  Um ar de desprezo por tudo e por todos. Era feio, antipático e velho. Era calado, olhar frio, felino.
Mas eu sabia. Eu sabia de tudo.
Ele não era só o relojoeiro solitário, com mau-hálito e olhos de cobra.
Ele era o senhor do tempo. Ele era quem através do grande relógio da praça comandava o tempo.
Eu sabia, eu sabia e tremia.
Um dia ele iria caminha até a torre mais alta onde estava o relógio centenário e com um passe de mágica faria o tempo parar.  Aprisionaria toda a cidade em uma longa noite sem fim.
Eu vigiava fascinado. Esperava o momento em que faria o movimento encantado. Sempre guardava as sobras de biscoitos do lanche, afinal, tinha que ter reservas para enfrentar a longa noite. Misteriosamente minhas reservas sempre sumiam. Ele deveria saber, sim ele sabia. O senhor do tempo me espreitava.
Um domingo chuvoso meu pai levou o nosso velho cuco a consertar. Era o momento.
Eu me esgueiraria por sua lojinha empoeirada, furtivo e astuto, descobriria seus segredos. Eu sozinho venceria o senhor do tempo. Eu seria o herói e certamente acima da torre do relógio fariam uma estatua em minha homenagem.
Entramos. A loja escura e vazia, empoeirada e fria. Fedia a tempos perdidos e horas mortas. Os tique-taques sonolentos nos conduziam ao torpor.. Armadilha. Papai entrou e tocou a avelhantada campainha no balcão. Passos arrastados, antigos, pesados. Um ranger de portas que levou séculos. Primeiro uma lufada de ar gelado entrou no pequeno recinto, depois o cheiro de primaveras findas e invernos longos.  Então ele entrou, puxando atrás de si os séculos todos.  Olhou-nos de forma  abjeta . Mas sua expressão mudou quando viu o cuco no balcão. Gelei. Seria aquela a última peça da maquina infernal que ele estaria montando no limiar do tempo?
 Meu pai ingenuamente trouxera para o monstro a derradeira peça de seu plano diabólico??? Gelei e estremeci.  Mãos frias e pálidas tocaram o cuco de forma quase libidinosa.
 Então era verdade. O cuco era a peça que faltava e ele dominaria a praça, o tempo e a eternidade. Controlaria as vidas, as estações,  os destinos de todos. Minha  garganta secara e meus olhos estavam congelados, fitos em cada movimento da figura espectral. Minha garganta emudecera e meu coração teimava em bater no ritmo daqueles relógios malditos.  Tentei apertar a mão de meu pai, implorar que saíssemos  dali as pressas levando o relógio enquanto era tempo. Mas o demoniozinho usou um artifício, um sortilégio, uma palavra mágica que hipnotiza a todos os adultos: “desconto”. E papai deixou-se ficar. Se olhasse para mim veria em todo o meu ser os alarmes de perigo.
 Então ele olhou para mim. Atravessou-me. Um olhar  glacial, cheio de zombarias. E se ele lesse pensamentos??? 
Sorriu e seu  disfarce desfez-se por  um segundo. E eu vi. Vi a face do monstro, vi a terrível verdade, ele não era humano. Minhas suspeitas estavam certas. Quando dei por mim, estava ao meu lado. Pouco mais alto do que eu,  olhando-me nos olhos, a boca semiaberta,  olhar enterrado nos meus. Percebi tudo. Ele queria não só parar o tempo mais roubar minha juventude. Toda juventude que existisse no mundo.
Quando falou, foi como se uma cripta se abrisse. Quer um doce, menino bonito??? Ele queria meus anos, minha vida, meu tempo. Estava a um passo  de roubar minha vida pelo preço de uma bala. Então  o mundo rodopiou e escureceu  ao meu redor, desfalecendo ainda pude ver o rosto de meu pai contorcido de preocupação e dor. Desmaiei. 
Acordei desesperado. Em minha cama, cercada pela família.  Num salto agoniado  gritei: Quanto tempo  falta???
 Quanto tempo ainda temos???
E desfaleci de novo.  

  
 

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