Senhor do tempo.
Era de pequena estatura,
numa casa feia e escura... A última casa da rua.
Ali morava o corcunda.
Homem baixo e carrancudo, o melhor relojoeiro. O vizinho mais estranho. Tinha uma longa cabeleira desgrenhada e
amarela. Nariz pontudo, fino e longo. Um ar de desprezo por tudo e por todos. Era feio,
antipático e velho. Era calado, olhar
frio, felino.
Mas eu sabia. Eu sabia
de tudo.
Ele não era só o
relojoeiro solitário, com mau-hálito e olhos de cobra.
Ele era o senhor do
tempo. Ele era quem através do grande relógio da praça comandava o tempo.
Eu sabia, eu sabia e
tremia.
Um dia ele iria caminha
até a torre mais alta onde estava o relógio centenário e com um passe de
mágica faria o tempo parar. Aprisionaria toda a cidade em uma longa noite sem
fim.
Eu vigiava fascinado.
Esperava o momento em que faria o movimento encantado. Sempre guardava as
sobras de biscoitos do lanche, afinal, tinha que ter reservas para enfrentar a
longa noite. Misteriosamente minhas reservas sempre sumiam. Ele deveria saber,
sim ele sabia. O senhor do tempo me espreitava.
Um domingo chuvoso meu
pai levou o nosso velho cuco a consertar. Era o momento.
Eu me esgueiraria por
sua lojinha empoeirada, furtivo e astuto, descobriria seus segredos. Eu sozinho venceria o
senhor do tempo. Eu seria o herói e certamente acima da torre do relógio fariam
uma estatua em minha homenagem.
Entramos. A loja escura
e vazia, empoeirada e fria. Fedia a tempos perdidos e horas mortas. Os
tique-taques sonolentos nos conduziam ao torpor.. Armadilha. Papai entrou e
tocou a avelhantada campainha no balcão. Passos arrastados, antigos, pesados. Um
ranger de portas que levou séculos. Primeiro uma lufada de ar gelado entrou no
pequeno recinto, depois o cheiro de primaveras findas e invernos longos. Então ele entrou, puxando atrás de si os
séculos todos. Olhou-nos de forma abjeta . Mas sua expressão mudou quando viu o
cuco no balcão. Gelei. Seria aquela a última peça da maquina infernal que ele
estaria montando no limiar do tempo?
Meu pai ingenuamente trouxera para o monstro a
derradeira peça de seu plano diabólico??? Gelei e estremeci. Mãos frias e pálidas tocaram o cuco de forma
quase libidinosa.
Então era verdade. O cuco era a peça que faltava
e ele dominaria a praça, o tempo e a eternidade. Controlaria as vidas, as
estações, os destinos de todos.
Minha garganta secara e meus olhos
estavam congelados, fitos em cada movimento da figura espectral. Minha garganta
emudecera e meu coração teimava em bater no ritmo daqueles relógios
malditos. Tentei apertar a mão de meu
pai, implorar que saíssemos dali as pressas levando
o relógio enquanto era tempo. Mas o demoniozinho usou um artifício, um sortilégio, uma palavra
mágica que hipnotiza a todos os adultos: “desconto”. E papai deixou-se ficar. Se
olhasse para mim veria em todo o meu ser os alarmes de perigo.
Então ele olhou para mim. Atravessou-me. Um
olhar glacial, cheio de zombarias. E se
ele lesse pensamentos???
Sorriu e seu disfarce desfez-se por um segundo. E eu vi. Vi a face do monstro, vi
a terrível verdade, ele não era humano. Minhas suspeitas estavam certas. Quando
dei por mim, estava ao meu lado. Pouco mais alto do que eu, olhando-me nos olhos, a boca semiaberta, olhar enterrado nos meus. Percebi tudo. Ele
queria não só parar o tempo mais roubar minha juventude. Toda juventude que
existisse no mundo.
Quando falou, foi como
se uma cripta se abrisse. Quer um doce, menino bonito??? Ele queria meus anos,
minha vida, meu tempo. Estava a um passo
de roubar minha vida pelo preço de uma bala. Então o mundo rodopiou
e escureceu ao meu redor, desfalecendo
ainda pude ver o rosto de meu pai contorcido de preocupação e dor.
Desmaiei.
Acordei desesperado. Em
minha cama, cercada pela família. Num
salto agoniado gritei: Quanto tempo falta???
Quanto tempo ainda temos???
E desfaleci de
novo.
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