quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Algodão-doce ( Prosa - 05)



Era uma menina baixinha de cabelos e olhos muito negros. Usava umas saias vermelhas,  rodadas e tamanquinhos de madeira barulhentos. Tinha sempre lenços nos cabelos e sempre, sempre, tagarela e estabanada.  Suas pernas eram grossas e curtas, mas era com elas que ganharia o mundo. Quando ficava excitada seus olhos brilhavam e suas bochechas ficavam muito enrubescidas. Gargalhada fácil e sonora. Dizem que quando ria até os mortos não a ignoravam. Na verdade, geralmente todo aquele vale ria com ela; de suas meninices e travessuras. Tinha aquela magia encantadora de ser menina por dentro  e mocinha por fora. Razão de seu desajeito, supunha eu. Era arisca no pensar e no falar e como atropelava as palavras, os gestos e os pequenos animais que encontrasse pelo caminho. É que o corpo não conseguia  acompanhar-lhe a alma nem a língua. Era cheia de enigmas e risadas, não necessariamente nessa ordem. Uma vez me perguntou sobre um espelho que reflete outro espelho. O reflexo de uma ilusão seria uma verdade? O reflexo de um reflexo se torna a coisa refletida?  Por caminhos estranhos andavam aqueles pezinhos, estranhos e divertidos.
Um dia subimos o morro, céleres e deitamos na relva para ver o sol se despedindo. Ela estendeu seu xale vermelho no chão e deitamos. Ela me deu a mão e ficamos ali de barriga pro céu. Eu ouvia o vento e sua respiração ofegante. Ela sonhava ao meu lado e eu ouvia sua respiração entrecortada pelo esforço da subida. Sentia o calor de seu corpo e o estremecer ritmado de seu peito. Foi quando ela olhou e sorriu para mim. Devolvi o olhar e ela ficou séria. Ela viu em meus olhos que embora estivéssemos de mãos dadas, irmão sol, irmã lua,  eu já não estava ali. Eu caminha dentro do coração dela, cuidadoso, passos delicados, sem mover uma graminha na passagem. Nós éramos assim, amigos de roda, amigos de contos de fada. Éramos duas crianças, eu o apanhador de pipas ela desenhava nas  nuvens castelos  distantes.
Um dia ela me disse por que gostava das nuvens. Disse que elas não podiam ser controladas, que eram fiéis a si mesmas que iam onde queriam ir, preguiçosamente sem relógio e sem pressa. O tempo da chegada é quando chegam, que nem as primaveras. E formam as formas que querem. São senhoras de si. São suas irmãs.
Um dia na vila dei de encontro com ela. Primeiro seus tamancos me encontraram. Quando me viu, saiu correndo ao meu encontro, braços estendidos, rápida como uma flecha e se jogou de bocão aberto contra meu algodão-doce que em vão tentei defender corajosamente. Num segundo seu rostinho lindo se afogou naquela nuvem de açúcar de onde emergiu rindo muito. Passando a língua por toda a boca, com algodão-doce até os cabelos gargalhando como uma louca. Ri com ela. Rimos os dois. E ela continuou a atacar sem piedade meu doce com grandes bocadas vermelhas, com aquele sorriso meigo e gargalhadas estridentes. Que fortalezas poderiam resistir? O algodão-doce foi o primeiro a ceder, depois eu, depois todos os passantes que viram a cena. Agora de olhos fechados, sobre o morro, ela completava o quadro. As nuvens eram leves, preguiçosas, senhoras de si e doces, muito doces. E eu fiquei ali, encantado entre suspiros e silêncios. Algodão-doce.

Um comentário:

Unknown disse...

Lindo!!!!!!!!!Esse foi o qual eu mais gosteiiiiii