Deserto de Ácaba ( piloto 1)
Tinham começado a caminhada
àquela semana. Apena a dois dia atrás partiram do mercado de sucre. O cheiro
das azeitonas, ameixas, cebolas, temperos variados, misturados aos perfumes e sabores das gentes.
Os gritos dos vendedores e o suplicar dos pedintes, a alma do mercado, enchiam
seus corações de saudades e lembranças. Iam beirando o Grande Deserto, o
deserto de Ácaba. Não ousavam atravessar o mar de dunas douradas e ululantes
que era o coração do deserto. Iam beirando as montanhas íngremes e sinuosas.
Gargantas profundas cujo o vento, a noite, emprestava seus gemidos espectrais.
Lar de chacais, ferozes felinos, saqueadores e sabe-se lá que tipo de monstros.
Mas eram as montanhas, nuas e sombrias ou o terrível deserto.
Passavam o dia calados,
caminhando pachorrentamente no ritmo das mulas, camelos e cabras. Seguiam em
caravana. Uma longa fila multicolorida a cortar os limites de Ácaba. Seu
caminho era ponteado de oásis, cidades fantasmas, ruínas e labirintos rochosos.
Mas a noite, em volta das fogueiras paisagens e homens mudavam. Os homens se
tornavam falantes, cantavam, dançavam e contavam estórias. E os jardins dos
céus floreciam de orquídeas brancas e brilhantes. Era a hora mágica. O cheiro
dos assados enchia o ar. Cítaras, flautas, alaúdes desenterravam a alma dos
homens. E o deserto se tornava um reino encantado. Foi numna dessas noite que
Alli Bem Chacal, com olhos que reluziam as chamas da fogueira me chamou para
perto. Eu tinha 15 anos e essa era a minha primeira jornada.
Sentei-me ao seu lado. O aroma de
seu longo cachimbo se mistura aos cheiros da noite. Trazia um embrulho ao colo
enrolado numa manta espessa e escura. Seu turbante vermelho emprestava-lhe ares
sobrenaturais quando refletiam o brilho do fogo. Chamou-me para sentar-me mais
perto. O vento soprava frio e fazia as areias dançarem. Alguém começou a tocar
uma cítara logo outros instrumentos a seguiram. Os olhos do velho guerreiro
tuaregue estavam entregues a meditação. Sentado em volta da fogueira eu bebia
estrelas.
- Bem, disse o chefe. Sua voz era
profunda, baixa e quente. Tenho algo para você.
Meu espírito de menino saltitou
de alegria quando ele apontou com o olhar o embrulho em seu colo, um presente.
Ele continuava olhando. Hora para dentro da fogueira, hora para dentro de mim.
Suas grandes mãos desfizeram os nós e começaram a desembrulhar a manta. E ante
os meus olhos, ali cintilando em seu colo surgiu o iatagã mais lindo que eu já
vira. A fogueira beijou a lâmina e ela respondeu faiscando vermelha. Fiquei de
pé. Era uma cerimônia.
Fogo, vento, estrelas e o deserto
testemunharam a passagem da lâmina fria as minhas mãos. Era pouco maior que meu
antebraço, aço branco. Branco como o luar. Cabo entalhado com mil preces e na
lâmina nomes mais antigos que a linhagem dos homens. O iatagã parecia pulsar em
minhas mãos.
Ia dizer alguma coisa solene,
madura, espirituosa quando o velho se levantou e disse tinha mais uma coisa.
Terminando de desembrulhar a
manta, pôs-se de pé e ergueu uma espada e brilhante. Tudo parou. O tempo, os
homens, o deserto. Uma espada Várnia. Leve como a pluma, macia como a seda,
mortal como o deserto. O velho parecia excitante em passa-la para mim. Todo o
acampamento parecia hipnotizado por nossa fogueira.
- Você já tem 15 anos. É hora de
por seu espírito em uma espada e uma espada em sua mão. É hora de ganhar um
novo nome também, um nome do deserto. Disse-me olhando com aqueles olhos
amendoados e brilhantes. O negro de suas vestes se confundia com a noite e eu
só vi a espada em suas mãos.
- Erga-se Asydhym, levante-se
Turandor de Tamarata. E apontando a espada para o céu, brandou:
- Contemple a face daquele único,
diante de quem se porá de joelhos e a única espada a quem deve temer. Essas
últimas palavras disse-as apontando para o deserto, cujas areias dançavam ao
redor de nós.
O acampamento explodiu em gritos,
palmas e músicas. Recebi a espada de pé e a pus no cinto ao lado do iatagã.
Chaitã me olhava com olhos
travessos e sorria. A música foi baixando. Essa noite, disse ele, você não dormirá em minha tenda. É um homem,
terá sua própria tenda agora, bem ao lado da minha, é claro. Foi então que
senti o perfume, o tilintar dos guizos. Uma mulher. Alta como as palmeiras e
esguia com elas. Quadris largos e seios fartos, envolta em sedas douradas e
escarlates. O rosto coberto mal escondia os olhos amendoados a pele cor de
pêssego, ela estendeu a mão e sorriu-me por entre o véu.
Alli Bem Chaitã olhou-me com
orgulho e alisando sua longa barba grisalha disse para que todo o deserto
ouvisse:
= A alma que porta uma espada da
justiça deve conhecer o amor pelo qual os homens vivem e morrem.
A mulher se aproximou de mim
suave como uma brisa, dançando e fazendo seus guizos tilintarem. Ela estendeu a
mão e arrastou-me docemente, marcando seus passos ao som da música. O vento brincava com os grãos de areia e a
noite não parecia ter fim para mim.
Eu tinha um iatagã, eu tinha uma
espada, eu tinha um novo nome. E naquela noite um novo homem nasceu, forjado no
fogo do deserto e nos seios da Lua.
Despertei com o mulá chamando
para as orações matinais. A mulher não estava mais lá. Nem o menino. Nunca a
tinha visto antes na caravana e nunca mais a veria. Aquela noite nunca amis
deixaria minhas lembranças, nem meu corpo.
No lugar da mulher encontrei
roupas negras dobradas. Uma bandeja com frutas, leite, vinho temperado com
especiarias e água, um turbante igual ao de Chacal e seus cavaleiros, minhas
armas.
Não vi o velho mestre até a
marcha começar. Homens e mulheres inclinavam-se quando eu passava. Mas as
novidades continuaram. Deixei o camelo em que comecei a viagem e o lugar entre
as mulheres, crianças quase no fim da caravana por um enorme corcel negro e me
juntei a meu mestre na dianteira da fila, junto a seus guerreiros.
Respeitosamente me pus a seu lado esquerdo e deixando o direito para seu
segundo em comando, como manda a tradição.
Quando saímos de Sucre, Alli
prometera a meu pai levar um menino e trazer um comerciante. Mas aquele filho
dos desertos tinha mais em sua mente do que eu e meu pai supúnhamos. Quanto
mais mudanças estariam por vir?
Foi meu mestre quem se pôs a
galopar mais rápido fazendo um sinal para que eu o seguisse e nos pondo a meio
quilômetro da caravana. O sol mal tinha começado sua jornada no céu. Ele
diminuiu a marcha, olhando para os céus procurando sinais, então fitou-me:
- Asydhym, a noite foi do seu
agrado? Sua voz era suave e paternal. Devo ter corado, gaguejei, baixando os
olhos e respondi que sim, ainda com a alma e o corpo aprisionado em sonhos e
lembranças.
- Você agora é um homem, disse
ele. Um de nós. Provou o mel. Agora terá que provar o sangue. Seu lugar é ao
meu lado na cabeça da caravana. Para sua família terá sempre o seu nome de
batismo. Mas para o povo dos desertos você é Asydhym, Turandor de Tamarata.
Você fará todos respeitarem seu nome e depois sua espada. Sempre nessa ordem e
não esqueça disso. Sua palavra deve ser firme como uma palmeira, mas como
ela, flexível. Você é como uma fogueira
e o mundo como um deserto. Deixe que todos que se acheguem a você encontrem
calor e abrigo.
E mais uma coisa, meu príncipe.
Terá que matar. Seu corpo e alma não são mais virgens. Sua espada não o será
também.
Tendo dito isso voltou seu cavalo
e galopou de volta a caravana. Deixei-me ficar por mais um tempo e pensei:
Será tão cheio de prazer e êxtase
perder a virgindade do aço como foi a da alma?
E voltei para a caravana
acelerado.
Tres dias tinham passado e eu
ainda procurava ao cair da tarde um lugar para treinar com minha espadas. Alli
tinha prometido me ensinar a usa-las, mas eu esta ansioso por demais e não
esperava o entardecer. Numa dessas
tardes alguém veio dizer que ali me esperava. Fui até meu mestre. Ele tinha uma
expressão grave. E sombras nos olhos.. Manteve-se de costas para mim quase todo
o tempo. Por fim disse
-Asythym, siga o desfiladeiro até
a garganta que fica ao sul da barraca de Balderor. Há uma coluna de lenhas
cortadas lá. Traga-a para mim. Falava de
costas. Falava como se as palavras lhe pesassem na boca.
O
mais estranho foi o que veio a seguir. Ainda sem virar-se para
mim..disse:
- Asydhym... Leve suas armas.
Mas é claro, meu senhor, a lenha
pode atacar-me, pensei eu. Mas preferi calar-me
Inclinei-me e ia saindo. Sabia
que aquilo era um trabalho para as mulheres e crianças...E a lenha já estava até cortada. Não era um trabalho para mim, não
era um trabalho de um homem adulto, nem preocupações para o senhor da caravana.
Obedeci...ia pelo caminho
meditando
Entrei no desfiladeiro ainda
aborrecido com a missão tão insignificante que havia recebido. Pensava, que
adiantava as espadas, o cavalo, o nome de guerra se tudo o que eu fazia era
catar lenha e ouvir estórias?!?
Os paredões de pedra de ambos os
lados nada respondiam. Só me faziam buscar respostas no céu sobre minha cabeça
onde as estrelas começavam a salpicar.. Entrei na clareira de pedra e vi a
coluna de lenhas. Nem era tão alta. Batia em minha cintura, qualquer um dos
moleques poderia com ela. Servicinho insignificante..Pensei.
Foi quando um rugido terrível
rasgou o ar. Ecoou tão violento e repentino que cai por terra. Um leão e estava
perto. Muito perto. Como um raio
compreendi a situação se ele entrasse na garganta antes que eu saísse estaria
encurralado. E como um raio me atirei pelo corredor estreito. E outro rugido
congelou-me o sangue. Ele estava ali. Já estava na garganta, encurralando-me.
Eu ia morrer. Ia ser devorado. Ia ser despedaçado. O cheiro do meu próprio medo
nauseou-me. E a fera emergiu lentamente a minha frente. Era descomunal. Uma
fera má. Parou um instante e farejou o meu medo. Então rugiu tão alto que caí
de joelhos. A fera caminhava lentamente, tentando cercar-me pelas costas dentro
da clareira. Eu não conseguia gritar, não conseguia correr, não conseguia, não
conseguia pensar. Meu coração batia contra o peito tão violento que eu mal
podia respirar. O fera parecia avaliar meu valor como refeição ou
brinquedo. Eu seria devorado. Lagrimas
quentes corriam por meu rosto e um suor gelado por minhas costas. Lentamente
minha mãos tremulas tomaram a espada. Não tinha chance, mas doeria menos se eu
ao menos tentasse lutar. Saquei a espada. O leão rugiu como se gargalhasse de
mim. Tentou rodear-me procurando o melhor ângulo para um salto..Tinha que
pensar rápido..ela ia procurar meu pescoço ou a cabeça se eu ficasse parado..Ou
minhas pernas se eu correse. Saltaria sobre mim de qualquer forma e me rasgaria
ao meio. Comeria minhas entranhas antes de eu tentar reagir. Meu corpo tremia e
doía terrivelmente. A garganta em chamas. Minhas costas pareciam de gelo e as
pernas de chumpo. Me esforcei para abri-las, fazendo uma base. Ergui a espada
acima da cabeça na posição do falcão. Ergui a cabeça numa ultima prece. Quando
vi os homens. Toda a borda da clareira esta cercada pelos guerreiros do deserto.
Traziam tochas e estavam silenciosos como estatuas negras. Vieram para o meu
funeral. Vieram comer os restos que a fera deixaria. Tentei gritar por socorro.
Mas o grito estacou na garganta quando vi o turbante vermelho de Alli Ben
Chacar a fitar-me entre os homens. Era uma armadilha. Eu caíra numa armadilha.
Deixariam que eu morresse miseravelmente e dividiriam as mercadorias de meu
pai. O leão e todos eles eram uma só
fera, uma besta maligna. Vou morrer. Vou morrer miseravelmente. O silencio era mortal e nem o vento penetrava
naquela garganta. Os homens todos estavam de negro e conduziam archotes. As
chamas davam ao leão uma aparência terrível. Alongavam suas sombras e faziam da fera um demônio de
olhos flamejantes. Eu estava prestes a
morrer, trucidado, dilacerado. Me mantive na posição do condor. Sem vento, sem som, sem movimento. O leão
acelerou. Soltou mais um rugido terrível. Até os mortos acordaram. E partiu em
minha direção. Como uma mola premida que se libera. Saltei para a dianteira com
a espada sobre a cabeça gritando desesperadamente também... Tres segundos, dois
segundos para o choque e eu pensei ver o rosto de minha mãe falecida a sorrir
para mim, me chamando para seu lado. Então o grande leão saltou sobre mim e
passou por mim pelo lado direito e se chocou contra o solo rochoso. Tinha três
flechas em seu dorso. Os homens na borda da clareira de pedras estavam todos
armados de arcos e agora gritavam e sacudiam seus archotes no ar. Gritavam meu
nome Asydhym Asydhym, Asydhym de Tamarata. Alli Bem Chaitã saltou para dentro
da garganta em minha direção e e com passos largos se aproximou de mim.
Olhou-me com olhos selvagens. E falou baixo rápido e profundo.
- Não chore. Eu te ordeno, não fraqueje, não desmaie. Corte a cabeça da fera. Corte agora. Termine com a agonia do animal. O leão ainda respirava e rosnava em agonia.
Um golpe asydhym, um golpe e corte a sua cabeça. Eu não consegui entender nada, mas a urgência
e autoridade daquela voz, o fogo naquele olhar fizeram minhas pernas pesadas como
chumbo se moverem. Com cuidado acerquei-me da besta com cuidado, seus olhos revirados pareciam
mais assustadores. Então com toda a força de minha alma enterrei a espada no
coração do leão e ele rugiu pela última vez me amaldiçoando. Os guerreiros explodiram
em êxtase. Gritavam e pulavam
violentamente, atiranbdo suas tochas para dentro da garganta. Tambores
começaram a tocar e um canto ergueu-se na noite fria. Quando tudo terminou,
somente eu, a fera e meu mestre estávamos na garganta. O delicado t6anger do
vento, o cheiro do sangue fresco, o silêncio. Chaitã me observava em silencio.
Avaliando o estrago ou a glória que aquela estranha aventura produziram em mim.
Deu-me as costas e começou a
caminhar em direção a saída. Só então consegui romper as garras do silencio que
me estrangulavam
- Eu falhei, não foi??. Eu tive
medo e falhei. Se seus guerreiros não tivessem morto o leão seria o meu sangue
ali, agora. Falhei, fui covarde e falhei.
O velho voltou-se lentamente para
mim e me olhou sorridente. Você venceu Asydhym, Turandor de Tamarata. Você venceu bravamente.
- Mas, mas vocês mataram o leão.
Não fui eu. Eu morreria. Se não fossem as flechas.
- Cale-se menino tolo. Você não
falhou coisa nenhuma. Você venceu.
Ante o meu olhar estupecfato. Ele
se aproximou de mim colocando a mão em meu ombro. E disse em meus ouvido.
- Minhas flechas mataram o leão,
mas a fera que você deveria vencer hoje era aquela que estava dentro de você.
O teste não era o leão. O leão,
sorriu ele, era a isca. Para trazer a tona o medo dentro de você, a fera que
rasteja nas sombras do seu coração. O verdadeiro perigo. O monstro estava
dentro de você. O leão, já estava condenado quando o atraímos para essa
garganta de pedra. Você só não estava a salvo de você mesmo.
- Asydhym, da próxima vez não
haverá flechas e você poderá estar sozinho. Mas seu coração estará sem medo.
Você venceu o desafio. Primeira
lição.
- Vamos. Saia atrás de mim. Não
pare para ninguém, não olhe nos olhos de ninguém, siga ate sua tenda sem parar,
não desmaie, não mostre fraqueza, não chore. E sobretudo tome um banho e
troque-se. Esta todo mijado.
Houve tarde e noite. A primeira
lição.
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