quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Si...



Estava em meu quarto. Bem, parecia meu quarto. Tudo estava envolto em uma névoa espessa e solene. Os móveis e todo o mobiliário emitiam uma vibração profunda que me atingiam como ondas. Se ficasse bem quieto poderia ouvir, melhor, sentir uma certa vibração, tudo emanava aquele tom...tudo vibrava. Confesso que achei engraçado. Mais engraçado ainda era o fato do quarto não ter fim, o quarto se estendia para frente e para os lados. Sem paredes ou limites. Eu não me mexia, nada além dos olhos. Mas para onde quer que olhasse só via aquela extensão tênue e vazia, o cômodo sem fim, o quarto escuro, mas estranhamente claro como num entardecer, as vibrações das coisas. A cama parecia maior e qual uma folha seca sobre um lago sereno parecia girar lentamente. Eu não me movia, a cama é que girava devagar, tranquila. E foi subindo, subindo, pelo menos parecia subir como um barquinho na maré alta subia lentamente e se estendia, como na superfície de uma bolha que inflava. Foi nesse momento que com surpresa mais sem assombro dei conta dele. Estava sentado do lado esquerdo, bem na beirada da cama, de costas para mim. Alto, empertigado, firme e imóvel como uma rocha. Suas pernas estavam dentro daquelas aguas tranquilas e escuras que envolviam a cama até suas bordas, mas não mais além. Mesmo sem se voltar para mim adivinhei-lhe as feições. Tinha a cor de cobre polido e escuro, seu rosto lembrava uma máscara veneziana. Suas vestes eram brancas e indefinidas, suas mãos de dedos longos pousavam sobre as aguas.  De vez enquanto a distancias distintas pequenos círculos se formavam na água espessa, fora isso nenhum movimento. Nada parecia igual, nada era diferente. Era como um sonho bom mais distante. Perguntei
- Quem é você?  Nada. Tentei de novo como um eco da primeira vez.
- Quem é você?  Dessa vez a resposta veio. A voz não cortou o caminho entre nós, brotou em minha mente como um pensamento próprio.
- Sou o condutor. Isso pareceu um fim em si mesmo. Isso pareceu dizer ou querer dizer tudo. Puxei a coberta instintivamente para meu peito e repeti. “condutor”.
Ele então voltou-se para mim. E pela primeira vez vi seus olhos. Parecia ouro polido. Extremamente claros e brilhantes. Uma onda de calor profundo me cobriu. Senti meu corpo vibrar. Ele apenas me olhava. Repeti quase hipnótico “condutor”. E ficamos assim calados. Uma dorzinha suave veio de dentro do meu peito e começava a espalhar-se por todo ele, como se uma faca estivesse sendo enfiada em meu peito. Olhei para ele como quem pede socorro. Ele se inclinou para mim, quase imperceptivelmente e seu dedo tocou-me o peito entrando quase até a metade. Um calor gostoso me envolveu como u abraço. Como se uma nota musical tivesse percorrido meu ser. Um entusiasmo, uma satisfação enorme preencheu todo o meu corpo e alma. Senti que ia mijar na cama de tão relaxado, mas não mijei. Sem se mover seu rosto voltou-se para frente e eu continuei ali, tranquilo, inebriado por aquele toque. Mas a diante, longe à esquerda clarões vermelhos e negros explodiam, no fim do horizonte, uma tempestade. Chegavam como procelas. Eram explosões, gritos, fogo, raios, escuridão, um vento gélido e espesso como garras de gelo chegavam até mim. Eram gritos sim, gritos horríveis e o ribombar de raios terríveis. O céu era pesado ali, denso, monstruoso e vinha se aproximando velozmente de nós. Toldando todo o céu atrás de si, maculando-o. Era aterrador e sufocante, como se grossos tentáculos de lama e lodo gelados, dedos de um gigante, se estendessem para mim...
- Não .... Olhe. Sua voz soou como as batidas nas teclas de um piano. Ele só disse uma vez. Mas estas palavras soaram mil vezes dentro de mim. Ele estava sentado na borda da cama, ereto, tinha uns três metros de altura. Suas roupas, como seria  possível, estavam mais brilhantes ainda... Um brilho prateado, muito intenso, mas não ofuscante.  Senti o calor daquele brilho. Não olhava para mim, mas para a tempestade.
- Não olhe.  Não sei se falou de novo, ou eram os ecos da primeira frase. Não traga eles para cá.  Dois tons. Uma ordem, um sussurro. Ele olhava direto em meus olhos e  olhava para a tempestade ao mesmo tempo. Eu queria perguntar como. Estava hipnotizado. Um terror horrível se apoderou de mim. Queria gritar, me mexer, virar, fugir. Queria estender a mão e abraça-lo segurar em alguma coisa. Ele cresceu mais ainda. Ou estava de pé sobre a borda de minha cama, olhava fixo para a tempestade. Uma garra gigantesca feita de fogo e raios cortou uma nuvem escura e esmurrou com força o mar levantando uma grande onda negra, gigantesca e mal-cheirosa de ventos e espumas escuras.  Ele levantou a mão direita espalmada para frente. E suspirou, prendendo o movimento por um segundo ou dois. E o vórtice pareceu congelar e retroceder. Recolher-se como uma capa velha enrolada sobre si mesma.
- Obrigado, disse aliviado ao ver aquele “mar tempestuoso” retroceder e perder-se no horizonte de meu quarto.
Mas uma vez sem saber se repetia ou se ainda eram os ecos da primeira fala, brotou em minha mente as palavras musicais, “Não olhe”. E quase no finzinho “Olhe só para mim”.  Ficamos em silencio. Era constrangedor e baixei a cabeça. Ele voltou-se para frente sem dizer mais nada. Para quebrar o gelo perguntei, não, pensei. Qual o seu nome?!? Ele de costa para mim, sentado como um capitão em seu barquinho e eu semicoberto . ”Qual o seu nome?” Que pergunta idiota
-Si...  Si é um nome. O nome-nota musical me deu uma animação, um alento, uma vontade de pular, de gritar, de me jogar sobre suas costas  e abraça-lo. Aquela voz explodindo em meu coração era como se um cachorrinho vira-latas pulasse em meu colo e lambesse meu rosto, naquela agonia de filhotinho...lambendo e pulando, me convidando para festa.
Si. Quando dei por mim, ele estava completamente voltado para mim, encarando-me, envergonhei-me de novo. Será que ele sabia o que eu estivera pensando? Será que lia meus pensamentos? Enrubesci. Cachorro de raça, com pé de gris, comportado....Grande, bonito e forte, emendei, corrigindo meus pensamentos.
Seu cenho franziu levemente, quase um coma.
- Si, um condutor. Apernas Si. Não uso rabo, disse por fim. As última palavras pareciam uma gozação comigo. Fiquei calado e confuso..
Daqui não há mais volta disse por fim. A cama agora deslizava com mais velocidade e vigor. Ele estava de pé na borda da cama, braços estendidos em fora de cruz... E uma luz brilhante começava a crescer no horizonte, maior até que isso. Ele sorria, o sorriso de quem volta para casa, para os amigos. Eu segurei na cama extasiado  e perplexo... De repente a cama parou abruptamente, tanto que rolei e dela teria caído se não me chocasse contra seu corpo, quente e solido como uma coluna. Ele estático. Inclinou a cabeça levemente para a esquerda como se estivesse ouvido vozes. Lentamente foi baixando os braços. E olhando nos meus olhos sem se virar disse num sussurro...
- Vamos voltar.
Pensei, mas ele disse ... Disse que não tinha mais volta..
E ele tomando meus pensamentos, completando-os disse...variáveis..
Vamos voltar... A cama começou a retroceder como num filme rebobinado de frente para trás... Uma dorzinha quente começou a queimar meu peito de novo. Olhei para ele como da primeira vez, pedindo socorro, mas ele não se voltou..
Vamos voltar, mas uma vez eu não sabia se ele tinha repetido ou ainda eram as primeiras palavras ecoando em minha mente...  
Alaridos...vozes...gritos... choro.. meu quarto foi clareando.. Uma agonizante onda de choque chocou contra meu peito... Alguém gritara bem em meu ouvido... DESFIBRILADOR... DEPRESSA.... 50 ml de ....dipina... Gente ... Muita gente... Rostos fantasmagóricos, conhecidos e desconhecidos  aos poucos iam ganhando foco. Médicos, enfermeiras, uma mixórdia de gente em meu quarto... Gritaria, correria, confusão.. médicos... Alguns rostos continuavam fantasmas, outros familiares.
Tinha sido uma bela final, eletrizante.  Tínhamos ganho de 3x2 o último gol aos 45 do segundo tempo, escanteio, de cabeça, goleiro nem pulou...
Madrugada, pressentimento, minha filha liga, não atendo. Liga de novo. Tabela com a vizinha. Vizinha bate a minha porta, tabelinha. Liga para minha filha. Filha cruza para mim. Ninguém atendeu. Minha filha, puro desespero. Tabela com o hospital... “Tem plano?!?” Liga para a vizinha, vizinha pro porteiro.. Porteiro para a ambulância. Ambulância corta o rol de entrada.. Furam a defesa e entra na grande área...
Si....
Si tivessem demorada mais um pouco... Si.
Si a minha filha não tivesse ligado.. Si.
Si a vizinha não tivesse dado o alarme.
Si os médicos não tivesse chegado a tempo...
Infarto do miocárdio...
Sem pulso....
Pressão arterial caindo...Perdemos ele.
Não. Não vamos desistir. Não cruzamos a cidade a toa. Desfibrilador. Potencia máxima... Mais um choque...
Mais um choque...
Mais um...
Vamos lá reage. Vamos lá... Honra essa camisa rubro-negra. Mais um choque... Vamos lá campeão.
Variáveis...
Voltou... Porra...ele voltou... Beleza!!!!
O quarto explode num gol de final de campeonato.
Si.... Si tivéssemos demorado mais um segundo, teríamos perdido a final...
Si.... Ao longe em meio à névoa que dispersava.. O condutor pareceu sorrir para mim...
Variáveis.
22/12/2013
2:54h

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